São Paulo, sábado, 25 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Eu presenciei o primeiro fim do mundo

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

No ano de 1937, quando Getúlio Vargas instituiu o Estado Novo, eu tinha começado a trabalhar no "Correio da Manhã". Em 1938, além do "Correio", trabalhava eu igualmente em "O Globo", pois naquele tempo um jornal só não dava de comer a ninguém.
Em "O Globo", além de Nelson Rodrigues, trabalhava também o "turco" (isto é, sírio-libanês) David Nasser, feio, um olho, se não me engano o esquerdo, perdido no espaço, como o de Herbert Moses, chefão eterno da Associação Brasileira de Imprensa e tesoureiro de "O Globo".
David, de quem ninguém fala mais uma palavra que seja, era repórter brilhante e letrista exímio de sambas que todo mundo cantava, como "Normalista", que incendiava a imaginação de Nelson Rodrigues, fanático por meninas de uniforme.
Pouco depois de firmado nosso relacionamento, David recebeu a chamada proposta irrecusável de Assis Chateaubriand para trabalhar na revista que viria, durante anos a fio, revolucionar a imprensa brasileira e deixar a todos boquiabertos: "O Cruzeiro".
Ex-marinheiro francês que lutara em Narvik, na Noruega, e agora exilado de guerra, chegara ao Brasil, com treino de "Paris-Match", o fotógrafo Jean Manzon. Manzon ficou horrorizado com o nível da impressão, da paginação, do texto e sobretudo das fotos de "O Cruzeiro".
E Assis Chateaubriand resolveu assaltar quem fosse necessário para criar, com Manzon, o "Paris-Match" do Brasil -o que fez, importando máquinas impressoras com as quais o jornalismo brasileiro ainda nem sonhava.
Cito "Chatô", de Fernando Morais: "Chateaubriand primeiro importou dos Estados Unidos, por 120 mil dólares de então, uma Multicolor, a mais moderna rotativa de que se tinha notícia. (...) Passados 20 anos, ao longo da década de 50, só duas impressoras, além de "O Cruzeiro", estariam trabalhando com aquele equipamento -o jornal 'O Globo' e a Lytographica Ypiranga".
Inovador, irresistível, Chatô só precisava satisfazer Manzon em mais uma exigência: dar-lhe como companheiro um repórter de primeira ordem. Chatô foi catar, em "O Globo", David Nasser. A dupla Manzon-David em breve conquistava o Brasil com um furacão de ocorrências sensacionais, verídicas ou não, ilustradas com fotos de estarrecer.
Quem cuidou e amou os índios da Amazônia (hei de repetir isto até morrer) foram os três irmãos Villas Boas, mas quem os apresentou ao Brasil, quem os colocou, ainda ferozes naquele tempo, e belos e destemidos, em nossa sala de estar, foram Jean Manzon e David Nasser.
Mas esses selvagens, que desaparecem dia a dia, não hão de me afastar, como tantas vezes fazem, do que eu queria contar, que era que, quando conheci David Nasser em "O Globo", houve o dia em que ele anunciou que o mundo ia se acabar.
Estou acompanhando, cheio de olhos, a novela de Dias Gomes na televisão e me lembrando obsessivamente de David Nasser e do fim do mundo no fim dos anos 30.
Tanto David como eu fomos em nossos jornais, naqueles dias anteriores à aviação comercial, o que se chamava "repórter de bordo". O Galeão de então era o Cais do Porto.
Entrevistei, a bordo do "Normandie" (o navio mais chique que o mundo já viu), a linda Sonja Henie, campeã mundial de patinação no gelo. Entrevistei em outro Tyrone Power.
Pois David um dia voltou do trabalho no seu navio, que acho que era o "Cap Arcona", e me confiou, o olho esquerdo mais esgazeado do que nunca: "O mundo vai acabar".
"Quando?", perguntei. "Coisa de um mês, mês e meio", foi a resposta, lacônica. "Mas amanhã você saberá de tudo."
O fato é que David tinha entrevistado um astrônomo e sábio, se bem me lembro alemão. "Em que língua haviam conversado?", perguntei, já que David, além do português, só sabia algum árabe doméstico.
A resposta dele foi vaga. Mas o sábio, segundo ele, era categórico. O mundo estava por pouco, condenado a se extinguir entre choques e explosões. David tinha escrito a reportagem do apocalipse. Estava entregue. Sendo paginada.
A reportagem saiu. Achei que meu amigo Dias Gomes a lera agora, para escrever seu "O Fim do Mundo" da novela das oito. O substituto de Evandro Carlos de Andrade teria exumado o texto de David Nasser dos sarcófagos onde jazem múmias ilustres do jornal.
Aliás, se existe relíquia do passado que mereça nossa veneração, nenhuma será mais valiosa do que esse texto, pois ele inspirou a obra-prima de Assis Valente, o samba do fim do mundo, que Carmen Miranda gravou:
"Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar./ Por isso mesmo a minha gente lá de casa começou a rezar./ Até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada,/ e a turma lá do morro não fez batucada./ Acreditei nesta conversa mole,/ de que o mundo ia se acabar,/ e fui tratando de me despedir/ e sem demora de me aproveitar./ Beijei na boca de quem não devia,/ peguei na mão de quem não conhecia,/ dancei um samba em traje de maiô,/ e o tal do mundo não se acabou!/ Chamei um gajo com quem não me dava,/ e perdoei a sua ingratidão,/ e festejando o acontecimento/ gastei com ele mais de quinhentão!/ Agora eu soube que o gajo anda/ contando coisa que não se passou!/Ih, vai ter barulho,/ vai ter confusão./ Porque o mundo não se acabou".
Travou-se uma moderada polêmica, cética e amolecada, sobre o pretenso fim do mundo. E me lembro de um embatucado David Nasser tentando trocar em miúdos o que o alemão previra, espichado na espreguiçadeira do convés do transatlântico, que já desatracara do porto do Rio.
Bom letrista que David era, como já disse, acho que nada o aborreceu mais do que o sucesso de Assis Valente. Deve ter sido então que David compôs a única letra horrível do seu repertório, citada hoje aos berros a propósito do Dia das Mães e que fala no "avental todo sujo de ovo".
Telefonei ao Dias Gomes, que me disse, para espanto meu, que do material de pesquisa que obteve para escrever "O Fim do Mundo" não havia menção de David Nasser ou de sua reportagem. Aliás, Dias Gomes ainda se perguntava, intrigado, o que é que teria inspirado a marcha de Assis Valente.
Respondo que a inspirou David Nasser, esse curioso "turco" que, depois que se dedicou ao outro Assis desta história, Chateaubriand, tornou-se um homem rico e um repórter pouco honesto, como se pode ver no livro "Chatô".
Será que daquele fim do mundo dos anos 30, criado por David Nasser e imortalizado por Assis Valente, só eu ainda me lembro?

Texto Anterior: Governador de Nova York proíbe venda de ecstasy natural
Próximo Texto: Mapplethorpe cria estética do escândalo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.