São Paulo, segunda-feira, 27 de maio de 1996
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Quércia usa FHC e Covas em sua defesa

DO CONSELHO EDITORIAL E DA EQUIPE DE COLUNISTAS

Quando eram senadores, o presidente e o governador aprovaram a operação que deu início à ruína do banco

As duas mais altas autoridades da República hoje, o presidente Fernando Henrique Cardoso e o vice Marco Maciel, aprovaram, como senadores, a operação que é tida, consensualmente, como o princípio da ruína do Banespa.
Trata-se de quatro AROs (Antecipação de Receita Orçamentária), feitas no final de 1990 pelo então governador Orestes Quércia.
ARO é um empréstimo que o governo do Estado toma de um banco, no caso o Banespa, para pagar com a receita orçamentária. Duas AROs não foram pagas, legando ao sucessor de Quércia, Luiz Antonio Fleury Filho, uma dívida equivalente então a US$ 642 milhões.
Fleury também atrasou a quitação e o acúmulo de juros e juros sobre juros contribuiu para deixar o banco em situação tão precária que, quatro anos depois, o Banco Central determinou a intervenção.
Em entrevista à Folha, por ele solicitada para exercitar seu direito de defesa ante o que considera "perseguição política", Quércia usa o aval de FHC, Maciel e também de Covas como demonstração de que a operação foi legal, pois teve o endosso do Senado.
O ex-governador, hoje com os bens indisponíveis, justamente em função do processo sobre o caso Banespa, diz que deixou o banco em ótima situação e que tanto a intervenção como o processo a que responde são operações políticas. Quércia permanece aferrado à tese de que é sadio o endividamento público para executar obras.
No seu último ano de governo, no afã de eleger o sucessor, ele acabou deixando uma dívida atrasada equivalente a US$ 1,8 bilhão junto aos empreiteiros, pelos cálculos da Associação Paulista de Empresários de Obras Públicas. O fato é que a herança jamais desapareceu e o atraso, hoje, é calculado em US$ 2 bilhões pelo governo estadual e US$ 3 bilhões pelos empreiteiros.
Quércia trouxe para a entrevista seu secretário da Fazenda, José Machado de Campos Filho, réu no mesmo processo, e cujos conceitos sobre o dinheiro público vão ainda mais longe. Considera "uma porcaria" o prejuízo de cerca de US$ 5 milhões provocado, no início do governo Quércia, por uma operação fraudulenta com ATMs (Apólices do Tesouro Municipal).
O presidente do Banespa, à época, era Otávio Ceccato, um dos homens da mais estrita confiança de Quércia. O caso das ATMs está pendente de decisão judicial.
A entrevista foi feita no dia 17, na sede da Folha, presente igualmente o economista Wadico Bucchi, que foi presidente do Banespa. Leia os trechos principais da entrevista, gravada, feita por Celso Pinto, Clóvis Rossi e Gilson Schwartz:
*
Folha - Qual é a sua defesa no caso Banespa?
Quércia - Alguém teria ouvido eu falar "quebrei o Estado, mas elegi o Fleury". Depois, virou "quebrei o banco, mas elegi o Fleury". Nunca disse uma bobagem dessas. Saí do governo com o Estado em dia, empreiteiros pagos, salário pago. Houve um probleminha no final do governo, que me fez fazer um empréstimo alto, que eu vou esclarecer também.
O Banespa encerrou o último balanço da gestão Quércia com um lucro líquido equivalente a US$ 155 milhões, tendo o balanço sido auditado pelas renomadas empresas Arthur Andersen e Trevisan, e aprovado pelo Banco Central e Comissão de Valores Mobiliários.
As ações do Banespa tiveram valorização que excederam ao próprio Ibovespa (Índice da Bolsa de Valores de São Paulo), que reflete a lucratividade média do mercado acionário. O patrimônio líquido teve crescimento de 16,4% no ano.
A captação de recursos internos cresceu 100% em termos reais atingindo US$ 3 bilhões. Na área de empréstimos, o Banespa encerrou 1990, o último ano de governo, como o segundo colocado dentro do sistema financeiro nacional, atingindo um volume da ordem de US$ 5,4 bilhões com um crescimento real de 62%.
Em fevereiro de 91 (eu saí em março), o Banespa apurou o último balancete da gestão Quércia e seus resultados foram os seguintes: resultado operacional de US$ 157 milhões, lucro acumulado de US$ 112 milhões. Então, ao contrário da suposição de que Quércia quebrou o banco, acredito que poucos governos deram ao banco a condição que eu dei.
Folha - O sr. pode até não ter quebrado o banco, mas aparentemente plantou a semente que iria quebrá-lo, porque as AROs representavam US$ 642 milhões de dívida da Secretaria da Fazenda junto ao Banespa, equivalentes a 91% do patrimônio líquido do banco, sendo que duas das quatro operações não foram quitadas, certo?.
Quércia - Você acha que US$ 642 milhões para um Estado que arrecadava US$ 13 bilhões no ano era muito?
Folha - A própria CPI da Assembléia Legislativa diz que...
Machado de Campos - A CPI foi um relatório feito por um deputado do PT em 24 horas e foi aprovado em 24 horas porque não tinha mais tempo para a CPI continuar fazendo os seus trabalhos. Esse relatório, eu impugnei ele inteirinho numa ação judicial mostrando que tudo o que está escrito lá é mentira. Esse número é mentiroso.
Folha - Qual é o número correto?
Quércia - Esse financiamento que eu fiz e deixei como dívida do governo com o banco significa pouco mais do que 15% do total do endividamento do Estado com o Banespa. Esses US$ 600 milhões, eu fiz em razão de uma queda de arrecadação nos últimos meses, para pagar o 13º salário do servidor público. Eu investi mais de US$ 12 bilhões no meu governo e deixei uma dívida com o meu sucessor para acertar. E ele acertou. Tenho até a quitação da dívida aqui.
Para um Estado que arrecadava US$ 700 ou US$ 800 milhões por mês não era uma coisa grande. Ao contrário, era dívida pequena tendo em vista o potencial do Estado em pagar essa dívida.
Folha - US$ 642 milhões nunca é pouco dinheiro...
Quércia - É uma questão de conceito. Mas eu acho importante ressaltar o seguinte: foi uma dívida legal, uma coisa absolutamente normal que ocorre hoje. Foi aprovada pelo Banco Central e aprovada por uma resolução do Senado. Eu tenho até aqui uma cópia da discussão, com um projeto do Fernando Henrique, inclusive. Discussão em turno único do projeto de resolução e tal de autoria do senador Fernando Henrique Cardoso e outros senadores.
Olha o que disse o senador Marco Maciel: "Sr. presidente, como líder do PFL, gostaria de dizer a V.Exa. e ao plenário que, como salientou o senador Ronan Tito, líder do PMDB, a matéria é resultado de entendimento havido entre as lideranças. Sr. presidente, nenhuma consideração teria a acrescentar, se não recomendar à bancada que vote favoravelmente à proposição". Foi aprovado por unanimidade, inclusive o Mário Covas votou.
Tem uma decisão do Tribunal Regional Federal e o parecer de um jurista, Miguel Reale Jr., que era secretário do Covas, que mostram que não existe nenhuma dúvida sobre a legalidade da operação.
Machado de Campos - No governo Fleury, foi aprovado pelo Conselho Monetário Nacional, Banco Central, pelas autoridades monetárias, o pagamento em 12 anos, em prestações mensais. Isso significou que, num determinado momento, a área econômica brasileira entendeu que 12 anos era um prazo suficiente para o Estado de São Paulo pagar suas dívidas. E que era um prazo suficiente para o Banespa receber os seus créditos.
O que aconteceu? Dois anos depois, em 94, com o Plano Real e um pouco antes por efeito também do Plano Collor, se tirou toda base monetária do mercado. Resultado: o Banespa ficou com um crédito para receber em 12 anos, só que ele não tinha mais dinheiro para sustentar aquele crédito em 12 anos.
Naquele momento eles deveriam ter refinanciado a dívida. O que eles estão fazendo hoje, eles deviam ter feito em 94, quando o governo sacou todo o dinheiro. O Banespa teve de ir ao mercado para captar esse dinheiro, só que, se os juros eram de 30% ao ano, passaram a ser de 150%.
Quando o Fleury assumiu o governo em 1990 a dívida era de US$ 3,9 bilhões. Quando ele terminou em 31 de dezembro de 94 era de US$ 9,7 bilhões. No ano passado, já estava em US$ 15 bilhões, mais ou menos, e hoje está em quase US$ 18 bilhões sem que se tenha tirado, nos últimos cinco anos, nem um tostão sequer do Banespa.
Quércia - Isso que eles fizeram com os Estados é um crime: Estado pagar juros de 10% ao mês.
Folha - Vocês, como administradores públicos, também deveriam estar preparados (para a crise de liquidez), em vez de ficar achando que o demônio são sempre os outros. Vocês não tomaram nenhuma providência. Era o governo Fleury, é verdade, mas vocês são co-responsáveis pelo governo Fleury.
Quércia - Eu não.
Machado de Campos - O que eles estão fazendo hoje deveriam ter feito naquele momento, quando a dívida era perfeitamente negociável. Quem sabe se o Banco Central naquela ocasião tivesse colocado R$ 1 ou 2 bilhões no Banespa não teria acontecido nada e o restante da dívida continuaria sendo pago pelo Estado em 12 anos.
O que fizeram? Esperaram chegar 31 de dezembro de 94 e declararam essa intervenção, politicamente. Se o Mário Covas fosse um governador de saco roxo, ele ia ao Fernando Henrique, ao presidente do Banco Central e resolvia isso em uma semana.
Folha - Essa dívida, o Quércia diz que foi para pagar o 13º. Qual era o valor do 13º?
Machado de Campos - US$ 500 milhões, mais ou menos.
Folha - Vocês não pagaram nem um tostão para empreiteiros com esse dinheiro?
Quércia - Não.
Folha - E como é que deixaram, como você disse no começo, zerada a dívida com empreiteiros? Se estava em queda a arrecadação...
Quércia - Ficou em dia a dívida com, vamos dizer, vencimentos que eram para fevereiro, para março, para abril.
Folha - O que está em julgamento hoje é se o governo foi prudente do ponto de vista da saúde financeira do Banespa ao fazer um endividamento dessa magnitude.
Quércia - O Estado, arrecadando US$ 700, US$ 800 milhões por mês, para uma dívida de US$ 600 milhões, não é muito. O endividamento público até quatro, cinco anos atrás, era uma coisa totalmente defendida e justificada. Até filosoficamente falando, sempre se entendia que os orçamentos deveriam ser deficitários, tanto que a Constituição permite os orçamentos deficitários. Se fosse algo filosoficamente errado, tecnicamente errado, estaria proibido.
Folha - Parece a retomada da tese de Quércia de que o Estado não foi feito para dar lucro. É uma tese política, mas não é uma tese sadia do ponto de vista econômico...
Quércia - O sadio é fechar hospital, é fechar escolas...
Machado de Campos - A filosofia de esquerda era essa de que era preferível você se endividar, fazer investimentos, resolver problemas da população, certo? Deixar essa dívida para ser paga por várias gerações para que você não onere em investimentos uma única geração. A filosofia orçamentária de antigamente era essa.
Folha - O Quércia disse que não disse a frase "quebrei o banco, mas elegi o sucessor", mas pode dizer: "quebrei o banco, mas fiz um montão de obras".
Quércia - Fiz um montão de obras sem quebrar o banco. Isso aconteceu porque nem o governo federal nem o governo estadual de quatro anos depois souberam gerenciar a questão do endividamento do Estado com o banco.
Folha - O problema é o seguinte: é óbvio que, se a resposta à questão do crescimento fosse o moto perpétuo do endividamento, o mundo estaria bem mais feliz do que está hoje, não é? Basta você crescer, fazendo déficit público, todas as gerações pagando. Se o Banespa chegou a essa situação, e o país como um todo entrou em crise, qual é a resposta que uma administração sensata deveria dar? Ajustar, pois você não pode continuar detonando o Banespa.
Quércia - O problema do Banespa veio quatro anos depois. Eu tenho convicção de que nos quatro anos do meu governo eu deixei o Banespa muito bem.
Folha - Vamos voltar ao começo da história do Banespa na sua gestão: o famoso caso das Apólices do Tesouro Municipal, operação feita pelo Otávio Ceccato, que era seu homem de confiança e deu um enorme prejuízo ao Banespa...
Machado de Campos - Foram operações feitas com títulos que eram da Prefeitura Municipal de São Paulo e cujos prejuízos para o Banespa foram ínfimos.
Folha - Partindo do princípio de que um administrador público pode passar por cima de prejuízo de US$ 5 milhões para o Banespa, US$ 2 milhões para a União...
Machado de Campos - O atual governo deu em um ano US$ 10 bilhões de prejuízo de juros para o governo de São Paulo e vocês estão com a boca fechada. Agora, uma porcaria de uma operação...
Folha - Você acha US$ 2 milhões de dólares de dinheiro público uma porcaria de operação?
Machado de Campos - Uma porcaria de US$ 5 milhões, naquela época...
Folha - Está bom, é uma definição de modelo de gestão achar que US$ 5 milhões de dólares é uma porcaria.
Machado de Campos - Se a operação foi criminosa, apura quem praticou o ato criminoso e põe na cadeia.
Folha - Vocês não têm nada com isso? O governo foi conivente...
Machado de Campos - Não é verdade que o governo foi conivente. Eu era secretário da Fazenda eu só fiquei sabendo dessa operação quando foi noticiada...
Folha - A direção do Banespa na época foi conivente e era gente da mais absoluta confiança de vocês.
Machado de Campos - Na hora em que nós ficamos sabendo, imediatamente foi acionado o Tribunal de Contas etc., para verificar o que estava acontecendo.
Folha - No caso dos créditos privados do Banespa, a taxa de inadimplência é 50%. A média do sistema bancário privado, antes dessa maluquice dos juros, era 3%. Hoje é 10%, 12%, mas era 3%. Se o Banespa empresta mal 50%, comparado a 3% do sistema privado, não é algo que esteja na média.
Machado de Campos - Isso aí não é nosso governo. A única operação, a única dívida que vi hoje lá lançada, vem desde 1985 e era da Vasp. Vasp era estatal do mesmo jeito que Metrô, Dersa, Fepasa.
Folha - Mas houve uma série de outras operações para o setor privado: Moinho São Jorge, Cooperativa Agrícola de Cotia...
Machado de Campos - Tudo depois do nosso governo.
Folha - A exposição de vocês do ponto de vista político conduz à seguinte conclusão: todo mundo neste país cometeu erros nessa área de gestão, menos vocês.
Quércia - Eu não sei se todo mundo cometeu erro. Nós não cometemos.
Folha - Nessa conversa, surgiram pelo menos dez nomes de pessoas relevantes da administração pública, inclusive o presidente Fernando Henrique Cardoso...
Quércia - Nós não estamos falando que foi errado o que ele fez. Está certo o que ele fez. Ele era senador do nosso Estado e simplesmente apresentou uma resolução junto com outros senadores. Quando eu fui senador, fazia isso.
Folha - Vocês investiram US$ 12 bilhões e disseram que fizeram uma gestão sensata. Um ano e meio depois que vocês saíram, o Estado foi obrigado a fazer um grande refinanciamento. O Fleury pode ter todos os defeitos do mundo, mas não consegue quebrar o Estado em um ano e meio.
Quércia - No final do meu governo, o total da dívida era de US$ 4 bilhões e pouco. O grande problema foi esse processo do Real, que não teve a sensibilidade...
Machado de Campos - Vocês sabem em quanto nós aumentamos a dívida mobiliária do Estado de São Paulo durante o governo Quércia, tendo investido US$ 12 bilhões? Em 4,2%. Um governo que dobrou a arrecadação e aumentou em 4,2% a dívida do Estado de São Paulo e você vem dizer que nós quebramos o Estado? Que nós quebramos o Banespa?
Folha - Dobra a arrecadação, investe muito e, de repente, sem mais nem menos, descobre que não consegue pagar o 13º.
Machado de Campos - O Estado tinha um orçamento que tinha que cumprir no ano de 90 e começou a cumprir. O que aconteceu no ano de 1990 com as medidas que foram tomadas pela Zélia? A partir de setembro a arrecadação começou a cair. Mas se você tinha Orçamento aprovado pela Assembléia, com tudo aquilo para ser cumprido, tinha de ir cumprindo.
Quando estava para o Fleury assumir, tive uma reunião com ele e disse: Fleury, durante três meses deixe tudo paralisado, não aumente um tostão de salário, bote a casa em ordem que depois você começa a administrar.
Folha - Botar a casa em ordem é a aceitação implícita de que a casa não estava em ordem.
Machado de Campos- Se nós estávamos devendo US$ 640 milhões em ARO, botar a casa em ordem é o quê? Pára tudo, paga esses US$ 640 milhões ou paga mais alguma coisa e começa com zero quilômetro o negócio.

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