São Paulo, segunda-feira, 27 de maio de 1996
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O papel de Quércia na invenção da minissaia

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Os fascículos sobre o século 20 publicados por um jornal de Campinas revelaram uma delicada manipulação genética. Mary Quant, a lançadora da minissaia, foi substituída por Orestes Quércia na galeria das figuras que marcaram nossa época. Não se trata de um ser transgênico: Quércia, como inventor da minissaia, por exemplo. A mudança foi total.
Quant foi para as dobras da memória, para o fluido limbo onde gravitam as pessoas simples e anônimas do século.
Já Quércia subiu no olimpo, no generoso espaço que os redatores cavaram para ele na letra Q.
Em vez de recusar o olimpo totalmente e substituí-lo por pessoas simples, os admiradores de Quércia limitaram-se a cavar um lugar para ele, deixando todos os outros milhões de figurantes que passaram pelo século na escuridão do anonimato.
Braudel está sendo lançado no Brasil com uma imponente história do cotidiano. Seu ponto de partida foi precisamente a recusa do olimpo. A trama histórica não se desenrolaria mais a partir do destino dos reis e dos grandes políticos, mas ela seria buscada ali na evolução das coisas mais simples de nossa vida.
Esse enfoque, apoiado numa sólida erudição, acabou sendo um marco na historiografia. Mas há outras experiências mais simples do que a de Braudel. Nem por isso deixaram de impressionar.
O escritor James Agee e o fotógrafo Walker Evans decidiram viajar pelos Estados Unidos, contando a história de gente simples. Agee foi um grande artista e dele só tivemos no Brasil a tradução do romance "Morte na Família". Ele tinha uma técnica poderosa.
Evans era filho de um grande publicitário, andou pela França frequentando a livraria de Silvia Beach, admirando James Joyce de fora de vitrine e quase se tornando também um escritor.
Mas resolveu trabalhar com fotos, recusando um pouco o esteticismo de Alfred Stleglitz, grande nome da foto americana, e tentando alguma coisa mais simples, mais próxima da vida. Tornou-se uma referência e, junto com Agee, patrocinados, quem diria, pelo Ministério da Agricultura, caíram na estrada.
O trabalho que fizeram iria se chamar "Posseiros do Algodão: Três Famílias" e acabou se chamando "Vamos Louvar Agora os Homens Famosos".
O respeito na relação com seus entrevistados, a dignidade que as famílias transmitem, o texto de Agee, tudo isso acabou transformando o livro num dos clássicos da cultura americana.
Esses esforços na contramão do culto às personalidades do século 20 acabaram se tornando obras imortais, embora não os consultemos como as enciclopédias e outras listas dos "mais importantes".
O "Diário de Campinas" pode inaugurar um novo fascículo: "Campinas no Século 20". Seria a maneira de dar a volta por cima, incluindo professoras, médicos, loucos, mendigos e poetas da cidade. E, por que não, Quércia, Orestes, um ex-governador de São Paulo que começou sua vida política na cidade.
Transfigurada, a idéia do "Diário de Campinas" pode ser até boa. Todo mundo devia ter o direito de construir sua própria lista, apontar as figuras que marcaram o século, do ponto de vista de seu próprio cotidiano.
Eu, por exemplo, abriria na minha lista um espaço na letra A para Artur Bispo do Rosário, artista que sobreviveu em tempos difíceis, encerrados muitos anos num quarto de hospício, reconstruindo o mundo com os materiais que achava dentro da própria prisão.
Fellini conta uma história de um grande artista que visitou a província e recebeu para uma conversa um candidato a escritor de uma pequena cidade. O jovem falou de seus planos de trabalho, e tudo parecia meio aborrecido para o grande artista.
Quando terminaram a conversa e foram passear descontraidamente pelas ruas, o jovem começou a contar as dificuldades e alegrias de seu cotidiano na província. O grande artista virou-se para ele e perguntou: "Por que você não escreve sobre isso? Parece-me magnífico".
Somos todos matéria de um século agonizante. Milhões de tramas históricas se urdiram nas esquinas de Sarajevo, Caracas e Conceição do Mato Dentro. Heróis e vilões apareceram e sumiram da cena. Lorca, Lumumba, Lamarca e Marighella, centenas de camponeses sem terra, os anônimos mortos de Hiroshima.
Não me pergunte por quem os sinos dobram, Orestes Quércia. Eles dobram por você; deixe que passem as minissaias, que a senhora Mary Quant continue viva na memória dos que a cultuem.
Diziam alguns antropófagos que acabamos incorporando as qualidades da pessoa que comemos. Corre, aí sim, o risco de aparecerem novos fascículos revelando um novo ser transgênico na letra Q: Quércia, criador da minissaia justa.

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