São Paulo, quarta-feira, 29 de maio de 1996
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A mulher, mais uma vez, a ré

ADRIANA GRAGNANI

O movimento de mulheres tem adotado sucessivas palavras de ordem sobre a violência perpetrada contra a mulher: "quem ama não mata, não agride, não maltrata"; "a impunidade é cúmplice da violência", entre outras.
A ONU tem definido políticas sobre o assunto e recomendado a sua adoção pelas diversas nações. O governo brasileiro é signatário de várias e acertadas declarações internacionais que versam o combate à violência contra a mulher. É bom lembrar aos fracos de memória que a Constituição privilegia a dignidade da pessoa humana. É esse um dos princípios fundamentais do estado nacional. Esse não é um compromisso isolado. Significa que a sociedade e os poderes constituídos, leia-se Executivo, Judiciário e Legislativo, devem estar atentos e efetivamente colaborar para a superação de tão triste fenômeno social.
Portanto, a posição do STF, absolvendo o réu Márcio Luiz de Carvalho, condenado por estupro à M.A.N., que por ocasião do crime tinha 12 anos, traz um profundo sentimento de indignação. Não é pela absolvição, que parece ser praxe nesses tipos de crime. É que, mais uma vez, a mulher, no caso a menina ou quase adolescente, que é vítima, passou a ser ré.
A lei penal é clara na descrição do que é crime e quando uma conduta aparentemente criminosa não o é. Não se enquadra o cidadão em julgamento nas hipóteses legais. Praticou o crime, pois a violência contra menores de 14 anos é presumida, nos casos dos crimes contra os costumes, em que, de forma retrógrada, aliás, é definido o estupro no Código Penal. Trata-se, antes de tudo, de crime contra a vida. Se cabe revisão da lei adequando-a ao contexto social, o que vem sendo defendido pelas mulheres brasileiras (uma releitura a partir dos conceitos de raça, gênero e etnia de toda a legislação infraconstitucional), não é no julgamento de um caso concreto que ela se dará.
O relator do caso, ministro Marco Aurélio de Mello, aceitou todas as aparências ("nos nossos dias, não há crianças, mas moças de 12 anos"; "a menor, contando apenas com 12 anos, levava vida promíscua"), fechando-se para as claras evidências de que a conduta do então réu foi indigna.
Do balanço entre o crime cometido e o restabelecimento da ordem social, pelo Poder Judiciário, venceu a violência do réu. Desrespeitou, o STF, a condição feminina. A menina M.A.N. foi punida por ser menina; por sua condição de pobreza; pela omissão, consentimento e desprezo alheios sobre sua situação socioeconômica; por ter tido sua dignidade ofendida, enfim, foi, mais uma vez, a ré.

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