São Paulo, sexta-feira, 31 de maio de 1996
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Oswaldo Goeldi desprezou euforia nacionalista

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Chega de mulatas, bananeiras, bandeirinhas, luzes tropicais: a galeria de arte do Sesi está apresentando uma exposição das gravuras de Oswaldo Goeldi (1895-1961), e esta é uma oportunidade rara de tomar contato com a obra de um artista moderno brasileiro que não se deixou levar pelas tentações do exotismo, da cor local, da euforia nacionalista que caracterizaram a pintura brasileira do século 20.
Ao contrário, as gravuras de Goeldi impressionam pela escuridão obsessiva, pelo desespero psicológico; cenas de chuva, de casarões noturnos, pessoas sempre de costas, subúrbios desolados, terrores, solidão de pescadores num clima de tormenta. Não há muita luz nessas gravuras, e mesmo a cor só aparece esparsa, numa mancha ou outra, quase como uma concessão de realidade num ambiente torpe, escuso, ermo, baldio.
É uma ocasião excepcional a que temos com a exposição de Goeldi no Sesi. Geralmente, sua obra aparecia apenas como uma nota de rodapé interessante nos acervos e coleções de arte brasileira. Podemos ver, agora, o conjunto de suas gravuras e desenhos, destacado numa exposição individual.
Aí começam os problemas. Sem dúvida, mostra-se um artista de grande coerência individual, de enorme apelo, grande maestria, total pertinência psicológica -como Kafka- para os dias que correm.
Acontece que, atualmente, está em curso uma revisão crítica da obra de Goeldi. Falei acima na "nota de rodapé" que seria Goeldi na história das artes plásticas no Brasil. O esforço corrente, todavia, está em fazer dessa "nota de rodapé" uma presença central.
Esse esforço se explica. É muito interessante, nesse sentido, o livro de Sheila Cabo sobre Goeldi, "Modernidade Extraviada", editado pela Diadorim/Adesa. Pelo que pude entender, Sheila Cabo incrimina os modernistas clássicos, os de 1922, de uma confiança progressista, de um nacionalismo eufórico e nacionalizante, do qual Goeldi seria uma digna, gigantesca exceção.
Com efeito: não há tela de Portinari ou Di Cavalcanti que não exalte as grandezas brasileiras, e mesmo Lasar Segall, russo da escola expressionista, rendeu-se à festividade da paisagem tropical.
Havia um "progressismo", mais ou menos nacionalóide e getulista, em toda a produção pictórica brasileira no século 20. Goeldi seria a exceção à regra; indiferente à cor local, dava ao drama dos excluídos e dos deserdados uma aura expressionista, dramática, dostoievskiana.
Sem dúvida, Goeldi atingiu seus objetivos de expressão. Cada gravura que ele mostra é um poema desesperado e fortíssimo. Tudo ali é escuro, mesmo o sol. Os postes de luz, na rua deserta, não iluminam nada; o deserdado, o pobre homem encurva as costas a caminho de uma casa que não há, os pescadores apontam vagamente a tempestade, um peixe enorme de cabeça cortada os espia, o terror da existência aparece, ao mesmo tempo preciso e vago, nos cortes da xilogravura.
Mas, se Goeldi é um belo artista, cumpre desconfiar um pouco da tendência atual para valorizá-lo.
Há vários fatores em jogo. Primeiro, o de que transmite uma visão antieufórica da modernidade urbana. Em 1996, todos sabemos que a urbanização e o industrialismo, utopias sociais no Brasil desde 1920, não deram certo. Natural que gostemos de paisagens urbanas trágicas como as de Goeldi.
Em segundo lugar, tudo o que era nacionalismo triunfal virou farsa hoje em dia. O projeto de emancipação brasileira, que marcou os anos de 30 a 60, hoje é visto como coisa ridícula; há quem queira que a burguesia brasileira se arrebente face à concorrência dos importados.
Como Goeldi é o único moderno que não é explicitamente nacionalista, ele ganha, aos olhos contemporâneos, uma verdade e uma força que Portinari, Di Cavalcanti, Volpi etc. não possuíam.
A isso se soma um terceiro fator: dos grandes artistas brasileiros, Goeldi é o único que não entrou no mercado de arte. Qualquer um vai a leilões em que Guignard, Pancetti, Portinari ou Graciano estão sendo vendidos a preços de mercado. Goeldi, não. Suas xilogravuras estão fora do mercado.
Consequência previsível, fortalece-se a tendência para considerá-lo melhor artista, para recuperá-lo historicamente.
Essa tendência dos especialistas em revalorizar a obra de Goeldi é tão justa quanto suspeita. Há circunstâncias ideológicas -antinacionalistas e antimercado- em curso. Goeldi é um grande artista. Mas Portinari -hoje em dia visto como diluidor- também era.
Portinari fez uma diluição, sem dúvida, da Guernica de Picasso ao mostrar o drama dos retirantes da seca. Sua linguagem não era das mais modernas. Clóvis Graciano reduziu-se à banalização de flautistas angulosos contra um cenário futurista; Volpi repetiu à exaustão suas bandeirinhas; Di Cavalcanti, suas mulatas.
Foram todos vítimas e cúmplices (Portinari nem tanto) do sistema de mercado. Passaram bobamente das encomendas estatais -painéis em obras públicas- para os leilões de arte e para os vestíbulos dos condomínios de luxo. Nesse sentido, tornaram-se mais brasileiros, isto é, integrados ao processo de expansão do consumo de classe média.
Mas não é porque Goeldi foi excluído desse processo que se justifica, hoje em dia, elevá-lo a um papel central. Esse grande artista não diz tudo sobre o Brasil; mostra o drama de uma exclusão muito real, exaspera-se nos retratos de uma realidade urbana muito triste, alonga-se nas esperas de pescarias improváveis, mas não me parece simbolizar o papel do artista brasileiro fundamental.
Retrata-se a si mesmo? Talvez; é um grande intérprete das realidades que viveu, das realidades que há neste país. Não é um artista completo, todavia; idiossincrático, particular em seu enfoque, não abarca em sua obra o que foi o século 20 brasileiro, como a atual moda em torno dele pode fazer crer.

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