São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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Dimensões da crise econômica

PAUL SINGER

Há poucas semanas, o IBGE divulgou afinal os resultados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 1993, entre os quais alguns são deveras surpreendentes e intrigantes.
O mais importante deles se refere à repartição das pessoas ocupadas pelos diferentes ramos de atividade. O total destas pessoas era de 66,570 milhões, das quais 18,254 milhões estavam na agricultura. Em 1990, a PNAD registrava 62,101 milhões de pessoas ocupadas, das quais 14,181 milhões na agricultura.
Isso significa que, em três anos, 4,469 milhões de pessoas somaram-se ao total de ocupados, dos quais 4,073 milhões na agricultura e somente 397 mil nas atividades não-agrícolas.
Mais de 91% dos brasileiros que se juntaram à força de trabalho ocupada entre 1990 e 1993 encontraram ocupação na agricultura. É o oposto de todas as tendências históricas do último meio século pelo menos, que registravam, como consequência da industrialização e da expansão dos serviços, a saída em massa dos trabalhadores da agricultura, a migração rural e o crescimento explosivo das cidades.
Para não recuar demasiado no tempo, tomemos como base de comparação o período 1986-90. Neste quatriênio, o total de ocupados aumentou em 6,665 milhões, o número de ocupados em atividades não-agrícolas aumentou em 6,814 milhões e o de ocupados na agricultura diminuiu em 149 mil.
Desde a década dos 40 pelo menos, a agricultura vinha perdendo participação relativa no total de ocupados, caindo sucessivamente de 65,9% em 1940 para 22,8% em 1990.
A explicação dessa surpreendente volta ao campo no início dos anos 90 parece ser a crise econômica, que atingiu sobretudo a indústria, mas se estendeu também a alguns ramos do terciário.
As PNADs de 1990 e 1993 mostram que os setores mais afetados foram a indústria de transformação, em que a ocupação diminuiu 9,3%, com perda de 872 mil postos de trabalho; outras atividades, em que predomina o setor financeiro, com queda de 19,1% da ocupação e eliminação de 327 mil postos de trabalho; e transportes e comunicações, em que a ocupação caiu 6,4% e os postos de trabalho diminuíram em 156 mil.
A diminuição brutal das oportunidades de trabalho nas cidades deve ter induzido uma parte dos excluídos a migrar às áreas de origem para se reintegrar à produção agrícola familiar.
Outros resultados das PNADs de 1990 e 1993 reforçam essa hipótese. Um é a distribuição do retorno ao campo pelas grandes regiões (exceto a Norte, cuja zona rural não é coberta pela PNAD): o incremento dos ocupados na agricultura foi proporcionalmente maior no Sudeste -36,5%-, vindo a seguir o Centro-Oeste -29,44%-, o Nordeste -26,6%- e, por último, o Sul, com 15,37%.
Ora, o Sudeste é a região mais industrializada e onde a crise de 1990-92 fez mais estragos. A diminuição da ocupação nos três ramos destacados acima -indústria de transformação, outras atividades e transportes e comunicações- foi de 15,6% no Sudeste, 11,0% no Centro-Oeste e 97,% no Nordeste, tendo havido aumento de 7,8% da ocupação no Sul.
Outro resultado que reforça a hipótese de que foi a crise que causou a volta ao campo é a evolução do número de ocupados não-remunerados, que são, via de regra, membros de família que explora alguma atividade em comum.
Seu número passou de 4,980 milhões em 1990 para 6,972 milhões em 1993, o que significa aumento de 40%. É muito provável que grande parte dos 2 milhões de novos não-remunerados seja constituída por assalariados que perderam seus empregos.
Esse resultado se liga ao anterior, referente à extemporânea volta ao campo, porque a grande maioria dos não-remunerados trabalha na agricultura. Em 1990, estavam ocupados na agricultura 79,1% dos não-remunerados.
O que se pode deduzir é que cerca da metade dos 4 milhões que retornaram ao campo o fizeram na condição de não-remunerados. Esta conclusão é reforçada pelo fato de o número de assalariados agrícolas ter caído de 5,236 milhões em 1990 para 4,935 milhões em 1993.
Nada indica que o aumento da ocupação agrícola tenha respondido a uma expansão da atividade e, portanto, da demanda por mão-de-obra. Se este fosse o caso, o número de assalariados certamente teria aumentado e não diminuído.
É conhecido o fato de que a agricultura familiar costuma servir de setor-refúgio para parte dos trabalhadores vitimados pelo desemprego, quando este se expande fortemente.
O fato é sabido também entre nós, na base de casos individuais de pessoas que, face à dificuldade em ganhar a vida na cidade, retornam à fazenda ou sítio da família para, pelo menos, garantir a subsistência, até que "as coisas melhorem".
Agora, dispomos de dados estatísticos que dão uma idéia da grandeza do fenômeno. Algo como 22% dos ocupados na agricultura, em 1993, era constituído por desempregados disfarçados, que, na melhor das hipóteses, contribuíam para a produção de subsistência da unidade familiar.
Houve um momento anterior, em nossa história recente, em que um outro retorno ao campo causado por crise deve ter ocorrido. Entre 1983 e 1985, o total de ocupados cresceu em 4,771 milhões, dos quais 2,075 milhões, ou seja, 43,5%, na agricultura.
Essa proporção é bem menor do que os 91,1% em 1990-93, mas está também muito acima do normal. Em 1981-83 teve lugar a pior recessão do século, de modo que o inchaço da ocupação agrícola logo a seguir é entendível.
A recessão de 1990-92 foi apenas um pouco menor, mas coincidiu com o início de uma mudança estrutural decorrente da abertura do mercado interno às importações: a desindustrialização. Deve ser por isso que o retorno ao campo atingiu desta vez dimensão muito maior.
Se essa hipótese estiver correta, a transferência de desempregados urbanos em grande número à agricultura não é solução permanente. A recessão acabou em fins de 1992 e após dois anos de crescimento ela voltou, a partir do segundo trimestre de 1995.
Durante o tempo todo, os efeitos da abertura do mercado e da revolução da informática se combinaram para produzir desemprego estrutural em grande volume. Portanto, o mercado de trabalho não se encontra aberto para reabsorver os que voltaram ao interior até que "as coisas melhorem".
Além disso, é preciso considerar os prejuízos que a agricultura sofreu com a supersafra de 1994-95, para avaliar em que medida deve ter se intensificado o empobrecimento no ramo.
Talvez isso explique por que a tensão social parece estar explodindo no campo, com a movimentação dos sem-terra e as cruéis repressões de que são vítimas. Não é preciso recorrer ao alarmismo para constatar que as dimensões da crise econômica brasileira são muito maiores do que se tinha pensado.

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