São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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A lógica do domínio

SHEILA SCHVARZMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1986, quando as antenas parabólicas começaram a aparecer, o historiador Marc Ferro instalou uma delas no telhado da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, para que ele e seus alunos pudessem acompanhar diretamente os acontecimentos que mudavam a União Soviética. Esse gesto espelha muito de sua personalidade inquieta e inventiva, em que se inclui também o uso do cinema para o estudo da história, ou um programa de televisão que dirige e apresenta há anos, "História Paralela".
Preocupado em entender a mundialização, processo que analisa em seu mais recente livro, "História das Colonizações", Ferro falou, em entrevista à Folha, sobre a mais nova face do imperialismo, sobre a situação atual da ex-União Soviética e da resistência cultural ao atual processo de uniformização.
Folha - O que o levou a regredir até o século 13, ao escrever esta grande "História das Colonizações", se a sua pergunta fundamental está na atualidade?
Marc Ferro - A idéia é mostrar que o problema colonial e o problema nacional são questões vizinhas, e que a colonização é um fenômeno que não pertence só à Europa, mas a outros sistemas culturais, como o dos árabes, turcos ou mesmo russos. Para isso, era necessário pegar o todo, e para que se compreenda o todo era preciso começar de muito longe para distinguir colonização de imperialismo e de mundialização, ou seja, o fenômeno atual que é uma nova forma de colonialismo, que denomino "imperialismo multinacional".
Folha - O que é exatamente a mundialização?
Ferro - A mundialização significa que não há mais nenhuma zona do planeta que escape ao mecanismo econômico dominante. Por exemplo: até o surgimento da borracha, o coração da Amazônia estava intacto. Havia zonas que escapavam da colonização e do comércio mundial. Hoje nada escapa.
Folha - Mas quem coloniza hoje?
Ferro - O colonizador hoje é o imperialismo multinacional, que não é de uma só nação; é um capitalismo, mas que está nas mãos de dirigentes de várias nações, os banqueiros americanos, ingleses, franceses e talvez até alguns brasileiros, sul-africanos e japoneses que constituem hoje um superimperialismo, mas não como antes.
Folha - E qual é o destino das nações?
Ferro - Elas reagem reeditando o nacionalismo, desenvolvendo contraculturas nacionais, não necessariamente marcadas por extremismo.
Folha - Mas nossos governantes têm saudado a globalização como uma ascensão do país, embora persista ou até se acentuem a pobreza e as desigualdades.
Ferro - Mas é por isso que há resistências, pois a uniformização reforça o poder das corporações mundiais, dos bancos, e a defasagem não é mais apenas entre nações ricas e pobres, como antes, mas também entre ricos e pobres, no interior de cada nação.
Folha - Pode-se, então, dizer que o processo de colonização está no interior de cada país?
Ferro - Exatamente. Há um nível duplo de colonização, que se exerce contra as partes mais pobres dos países pobres e contra as partes mais pobres dos países ricos -e há um número de pessoas ricas dos países pobres que participam dessa colonização. Um exemplo é a Guiné, antiga colônia francesa, em que talvez 100 ou 200 indivíduos participam do sistema.
Folha - Suas referências ao Brasil no livro não são muito longas. Há uma crítica à idéia de democracia racial de Gilberto Freire, que, como seu texto mostra, foi apropriada pelos portugueses como exemplo de que não eram racistas em relação a seus colonos africanos.
Ferro - As idéias de Freire sobre a identidade brasileira se desenvolvem no momento em que os colonos italianos e alemães afluíam ao Brasil. Afirmando o seu caráter misto, ele negava o predomínio da influência européia. Critico esta visão e coloco a especificidade do Brasil em relação a Angola, pois os portugueses gostam de afirmar que não são racistas. É necessário comparar com outros países, o que prova que em Angola os portugueses foram tão racistas quanto os ingleses ou franceses e que no Brasil as condições de povoamento são diferentes.
Folha - E a União Soviética?
Ferro - A história da União Soviética desde o início é uma história de colonização, mas que eles chamam de "expansão". Essa colonização é também uma questão nacional, porque eles anexaram nações como a Geórgia ou a Armênia. Enquanto na Europa e na América tendemos a distinguir a questão colonial da questão nacional, na Rússia, são a mesma coisa. Simplesmente há nações mais difíceis de vencer do que outras, como os turcos, por exemplo. Esse é o primeiro ponto. O segundo é que a colonização russa não é racista. A prova é que desde o tempo do czar, de Lênin, de Stálin, sempre houve no centro do Estado pessoas de nações diferentes: letões, alemães, gregos. Na França nunca houve um árabe no governo.
Folha - Por quê?
Ferro - Em primeiro lugar porque a construção do império não parte de uma raça, mas de uma associação de príncipes, das elites. Durante o comunismo, foi a mesma coisa. Stálin era georgiano, Trótski e Zinoviev, judeus. Em segundo lugar, a política comunista deixou as repúblicas se governarem entre si na base, sobretudo entre os muçulmanas.
Por isso a separação das repúblicas na Rússia se fez sem esforço, já que esses países sempre se governavam na rua, mas não na cúpula, em que era Moscou que decidia. Não houve revoltas anti-russas porque as pessoas não tinham o sentimento de uma opressão cotidiana. O único país que se rebelou foi a Tchechênia, que fazia parte da Federação Russa e queria desligar-se. Folha - Pela mídia, tinha-se a impressão de que as outras repúblicas da URSS sentiam-se oprimidas pela Rússia.
Ferro - Eles não eram oprimidos. Eles não queriam se revoltar. Quando Ieltsin criou a República Russa autônoma, ao proclamar a sua soberania, as outras repúblicas se viram excluídas da União Soviética, e no mesmo momento se tornaram independentes -elas não iriam recusar. Os únicos a se rebelar realmente foram os países bálticos cristãos -Letônia, Lituânia, Estônia e um pouco a Armênia, por problemas de território. Na Rússia se tem a impressão que, depois de um tremor de terra, a terra está se refazendo como antes.
Folha - Nos últimos anos, os cursos de história foram suspensos na Rússia por que não se sabia a que passado se referir.
Ferro - Antes de tudo, eles não sabem qual será o seu futuro. De tanto negar o passado, eles não sabem onde estão. Pensavam que a culpa era do comunismo, Stálin, Lênin e esquecem que houve uma revolução em 17. O Czar não era uma maravilha, mas agora já acham ele melhor. Há uma mudança completa das opiniões, mas não querem falar sobre isso porque não entendem e não querem compreender que a responsabilidade do comunismo não é apenas de Lênin ou de Stálin, mas de todo o povo que participou.
Folha - Nos últimos dez anos, o sr. publicou nove livros, sobre assuntos que vão da glasnost a questões da informação e biografias. Qual sua preocupação atual?
Ferro - Estou preparando "L'Impuissance et la Peur" (a impotência e o medo), sobre o aumento de epidemias no mundo que multiplica os doentes, em todos os lugares, e como a doença toma o lugar da greve e dos protestos, seja contra a organização do trabalho, ou contra a desorganização do trabalho, e como os trustes multinacionais químico-farmacêuticos controlam hoje a decadência da saúde pública.
Folha - É a mundialização da enfermidade?
Ferro - Exatamente.

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