São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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A museificação dos museus

PETER BURKE
ESPECIAL PARA A FOLHA

A próxima vez que você entrar num museu, seja ele o Museu do Ipiranga, o Louvre ou o British Museum, reserve algum tempo para observar o próprio museu. Os museus são muito mais do que meros recipientes para os objetos nele exibidos. Eles têm sua própria história e podem nos dizer muito sobre a época em que foram construídos.
Um "museu" era originalmente uma casa para as Musas. A partir da Renascença, o termo foi aplicado a coleções privadas de antiguidades, pinturas e criaturas exóticas, como crocodilos, tatus e peixes tropicais, que os europeus consideravam "maravilhas" da natureza. As coleções de certos reis atingiram proporções inusitadas. Depois de 1789, porém, iniciou-se um movimento para franquear a entrada das galerias reais, aristocráticas e eclesiásticas, para tornar seus tesouros mais acessíveis ao "público" (grosso modo, a classe média).
O Louvre, por exemplo, outrora um palácio real, foi transformado em museu no ano de 1793. O Brera de Milão abriu suas portas ao público em 1809 e o Prado em 1818. Tais museus faziam parte de um complexo ou sistema de instituições nas cidades européias que incluía bibliotecas, museus, galerias de arte, salas de concerto, óperas e teatros.
Este sistema ou regime "clássico" tornou-se mais nítido ao final do século 20, numa época em que dele nos desvencilhamos ou o deixamos para trás (seja voluntária ou involuntariamente). Em minha infância, ele ainda aparentava ser o sistema, pelo menos a muitos europeus ocidentais de classe média. Mas obviamente ele é apenas um dos sistemas, uma forma entre outras de organizar ou institucionalizar as artes, com dois aspectos básicos. Em primeiro lugar, a arte separada da vida e exibida num espaço à parte, claramente rotulado e muitas vezes protegido por uma redoma de vidro. Em segundo lugar, o monopólio da cultura legítima nas instituições oficiais.
Tal sistema clássico precisa ser situado em perspectiva histórica. Ele foi fundado por uma série de razões. Havia o ideal revolucionário de democratizar as artes, de arrebatar a cultura aos príncipes e torná-la acessível a um público mais amplo. Em Paris, a Assembléia Nacional votou a conversão do Louvre num "muséum français".
Havia também certo ideal nacionalista, como nos lembram os títulos de muitas dessas instituições: a Bibliothèque Nationale em Paris, a National Gallery em Londres, o Národni Divadlo (Teatro Nacional) em Praga (1868-81), o Rijksmuseum (Museu do Reino) em Amsterdam (1885) e assim por diante.
Os principais arquitetos da época foram contratados para projetar tais edifícios. O Museu do Ipiranga, com suas estátuas dos heróis da história nacional e suas esferas de vidro contendo água dos maiores rios do Brasil, integra uma tendência internacional, a de construir prédios magnificentes com a função de reforçar a identidade de uma nação (ou império) exibindo ao público seus tesouros.
As novas instituições também refletem a preocupação, por parte dos líderes nacionais, com a educação do povo, particularmente a classe trabalhadora urbana. O Victoria and Albert Museum foi fundado pelo casal real na época da Grande Exposição de 1851, com o objetivo de encorajar as artes aplicadas ou "industriais", tornando os exemplos tradicionais mais acessíveis aos artesãos.
Na Grã-Bretanha, cerca de 300 museus foram fundados entre a Lei dos Museus, de 1845, e a Primeira Guerra Mundial. Eles faziam parte de um movimento que ficou conhecido na época como "recreação racional", no qual o governo estimulava as classes operárias a adotarem novas formas de lazer num tempo em que a jornada de trabalho passou a ser limitada por lei.
Os maiores museus foram apresentados ao público como palácios da cultura, como templos para o culto às artes, lugares sagrados a que os visitantes acorriam em sua peregrinação secular, geralmente aos domingos, trazendo seus filhos, mas os mantendo em silêncio.
Os objetos expostos exemplificavam no mais das vezes a cultura superior, embora na Suécia o Museu Nórdico e o museu a céu aberto de Skansen concedessem também aos visitantes uma visão da tradicional cultura camponesa.
A arquitetura dos museus frequentemente revela as concepções de seus fundadores com particular clareza. O British Museum, por exemplo, foi projetado para assemelhar-se a um antigo templo grego, ao passo que o Victoria and Albert Museum guarda traços de um palácio italiano do Renascimento. A decoração dos novos edifícios também nos diz muito sobre as concepções coevas da cultura. O Kunsthistorisches Museum em Viena, construído entre 1872 e 1881 e decorado em parte por Gustav Klimt, ostenta não apenas as costumeiras musas e deusas clássicas, como Clio e Palas Atená, mas também o tema do triunfo das artes.
A representação de indivíduos específicos em tais lugares sagrados -escritores na abóbada das bibliotecas, pintores na escadaria das galerias de arte, dramaturgos nas paredes dos teatros e assim por diante- era uma forma de "canonização".
O Victoria and Albert Museum, para dar um exemplo, foi decorado com mosaicos desenhados por renomados artistas acadêmicos, como Lord Leighton, presidente da Academia Real, alçado ao pariato por "serviços à pintura", e hoje homenageado em Londres com uma exposição de sua obra.
Tais mosaicos representam a tradição clássica da arte a partir da Grécia antiga, desde Apeles passando por Giotto, Rafael e Michelangelo até chegar aos ingleses Inigo Jones e Christopher Wren. Por esse motivo, a construção foi irreverentemente descrita como o "Valhala de Kensington". Seu projeto decorativo construiu uma genealogia que legitimava a obra de Leighton e seus colegas ao vinculá-la aos "antigos mestres".
Hoje, o "cânon" tradicional dos grandes escritores e artistas plásticos é rejeitado por vários professores nos Estados Unidos e demais países, em razão daquilo que exclui -a obra de mulheres, minorias étnicas, cultura popular etc.
Há críticas também sobre a exibição de objetos em redomas de vidro, objetos arrancados a seus contextos originais em igrejas ou casas, assim como críticas às tentativas de separar a esfera da "arte" da vida social. Pode-se dizer que o museu clássico está ele próprio em via de se tornar uma peça de museu -mas uma peça tão digna de nosso interesse e atenção quanto os objetos que ela contém.

Tradução de José Marcos Macedo.

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