São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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Exibição de Veermer provoca onda de simulacros na Holanda

SAMUEL TITAN JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE HAIA

Marcel Proust imaginou o seguinte episódio para "A Prisioneira", quinta parte de "Em Busca do Tempo Perdido": Bergotte, escritor mediano e já moribundo, alcança a graça de viver o bastante para contemplar a "Vista de Delft", tela de Jan Vermeer (1632-1675); faz então o elogio do quadro e lamenta sua própria incapacidade criativa.
Quando Proust escrevia seu romance, a moda Vermeer ainda era recente: sua redescoberta fora obra do impressionismo, interessado na pintura ao ar livre e nos jogos de cor, luz e brilho. Desde então, a reputação do pintor de Delft só fez reforçar-se, e, assim, mais felizardo que Bergotte, o público europeu pôde atualmente encontrar 22 telas (de um total de 36) reunidas na exposição "Johannes Vermeer", que termina hoje na Mauritshuis de Den Haag (Haia).
Antes de chegar à Holanda, a mostra esteve virtualmente trancafiada na National Gallery de Washington, paralisada pela queda de braço entre o presidente e os congressistas republicanos. Aqui, com 320 mil ingressos vendidos e lotação esgotada, a exposição ganhou ares de evento nacional e mesmo pan-europeu: a própria rainha Beatriz veio fazer as honras da casa na inauguração.
Claro está que ninguém passa incólume por tal processo de canonização. A voga das grandes retrospectivas neste final de século ameaça antepor o ícone cultural -seja ele "Vermeer", "Matisse" ou "Mondrian", todos eles objetos de exposições recentes- à obra singular bem à nossa frente.
É claro que a biografia obscura deste pintor holandês mantém-no a salvo do mexerico histórico, sem entretanto salvá-lo de nossa perigosa reverência. Em alguma medida, todos deixamos de ver a leiteira, a ruela de Delft ou a moça com seu brinco de pérola, para vermos, rápida e sumariamente, "Vermeer".
Algo assim parece acontecer tanto às hordas de turistas como à refinada burguesia de Den Haag: fascinados sobretudo com os walkmans que "explicam" as telas, os visitantes intranquilos obstruem a visão e o movimento, alheios durante a meia hora que levam para percorrer as quatro exíguas salas da exibição.
Só com paciência -e muita- poderia o espectador obter um pouco da tranquilidade que as telas de Vermeer transpiram: cada qual bem valeria uma missa, e cada instante a mais traz um novo detalhe de ilusão refinadamente urdida e fugacidade cuidadosamente composta (ver o artigo de Simon Schama sobre o pintor no Mais! de 31/3/1996).
A saída da exposição não promete nada de bom. Um enorme bazar armado sobre o lago adjacente à Mauritshuis oferece a "trademark" Vermeer em infindáveis variações. Relógios, pôsters, cartões postais, pesos para papéis, camisetas, garrafas de vinho, artefatos de época, livros e, pasmem, pérolas!
Reproduzir a luz sobre a superfície polida das pérolas era um dos "morceaux de bravure" preferidos de Vermeer; sendo assim, por que não desencalhar algumas perolazinhas?
Para os apenas famintos, um "Vermeer brodje" (pãozinho à Veermer) ou um iogurte "La Laitière" serão suficientes.
Se a exibição do Vermeer autêntico provoca tal febre de simulacros, nada mais lógico que dar o passo seguinte e organizá-los em uma exposição paralela. Foi o que fez a Kunsthal de Rotterdam, com a mostra "Han van Meegeren", aberta ao público também até hoje. Han (Henricus) van Meegeren (1889-1947) parece ter saído do "Felix Krll", de Thomas Mann, ou da "História Universal da Infâmia", de Borges: depois de abandonar os estudos de arquitetura em nome da arte, Van Meegeren debuta com uma mostra individual em Den Haag, marcada pelo expressionismo de almanaque.
Seguem-se a viagem artística à Itália, as (inevitáveis) pinturas bíblicas, o fracasso, a pobreza despida do charme romântico dos primeiros anos. O pintor desprezado medita então sua vingança. Num velho livro alemão, aprende o manejo de resinas e pigmentos à maneira seiscentista; no manual do historiador Hannema, instrui-se a respeito da influência de Caravaggio sobre certos pintores de Utrecht.
Nada se sabe da formação de Vermeer; por que não imaginá-lo, ainda jovem, embebido de caravaggismo? O resultado é a tela "Os Discípulos de Emaús", vendida em 1938 ao museu Boymans-van Beuningen (dirigido pelo próprio Hannema e vizinho à Kunsthal) por 650.000 florins.
Van Meegeren não deixou de incluir no quadro algumas das marcas registradas de Vermeer: vidros de nitidez e transparência ímpares, superfícies refletoras, composição em poucas cores e, é claro, um belo fundo ocre. Seguiu a mesma receita em cinco outras "obras de juventude" do grande mestre, para não mencionar retratos bochechudos à Frans Hals e igrejas vazias à Saenredam. O momento maior, o triunfo, a glória infame vêm com a Segunda Guerra Mundial: o marechal Hermann Gõring, "parvenu" sanguinolento, engole a isca e compra "A Mulher Adúltera", o último da série Vermeer.
Com o fim da guerra, vem a catástrofe ("molto scherzando"): van Meegeren é levado ao tribunal, não por falsificar pinturas, senão por colaborar com o invasor, vendendo-lhe tesouros nacionais. Para provar sua inocência, o pintor tem que executar em duas semanas mais uma forja, sob a vigilância das autoridades. O resultado, que lhes parece admirável, leva à condenação, agora sim por suas habilidades de falsário. Van Meegeren morre em 1947 na clínica psiquiátrica a que é confinado.
Em 1950, um leilão de seus pertences tem bons resultados; Klaus Mann dedica um ensaio à "Dupla Vida de Han van Meegeren" e, em 1973, J. Bernlef publica o romance "De Maker", inspirado na vida do artista. Hoje, suas telas são disputadas pelos colecionadores. A dificuldade está em saber distinguir as autênticas; abundam, como sempre, os falsificadores.

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