São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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Garoto perde metade do cérebro, volta a falar e a frequentar a escola

IGOR GIELOW
DE LONDRES

Uma cirurgia saída de um roteiro de filme de ficção científica dos anos 50 está revolucionando a visão sobre o desenvolvimento da linguagem no Reino Unido.
Há cinco anos, Alex, um garoto então com oito anos, teve o hemisfério esquerdo de seu cérebro extirpado numa cirurgia.
Até então, apenas murmurava algumas palavras. Hoje, fala como um garoto de dez anos.
A cirurgia ocorreu sob supervisão do Instituto da Saúde da Criança de Londres e não mexeu em outras partes do cérebro de Alex, como o hipotálamo e o corpo caloso.
O hipotálamo controla, por exemplo, o sono, o metabolismo da água e a temperatura corporal. O corpo caloso liga as duas metades do cérebro.
O garoto, que ficou mais de cinco horas na mesa de cirurgia, não pode ter seu nome verdadeiro e endereço revelados por uma questão de ética médica. Sua família, contatada pela Folha por meio do instituto, não quis dar entrevistas.
Alex, como foi "batizado" por aqueles que acompanham o seu caso, está sendo estudado por uma equipe de 15 médicos britânicos e norte-americanos, de diferentes especialidades.
O garoto sofre de uma doença congênita, chamada síndrome de Sturge-Weber, que provoca falta de irrigação em determinadas partes do cérebro por estrangulamento -e falta- de veias e artérias.
Aos cinco anos, Alex já não tinha movimentos no lado direito do corpo. A visão direita estava comprometida. A síndrome, que atinge uma fração milionésima da população, não leva à morte.
A visão e boa parte das funções motoras -de movimento dos músculos- do lado esquerdo são controladas pelo lado direito do cérebro -e vice-versa.
Isso porque os feixes nervosos que são dirigidos aos músculos e os olhos que saem do cérebro, e que levam a mensagem "funcione" ou "deixe de funcionar" se "cruzam" num ponto abaixo do cérebro. Assim, as ordens que saem da esquerda vão comandar músculos do lado direito.
Sua família, do interior da Inglaterra, o levou para o instituto em Londres. Lá, depois de três anos de terapia sem resultados efetivos, decidiu-se pela opção da cirurgia.
"Logicamente é uma decisão difícil, e a cirurgia tem resultados não muito previsíveis. Mas todo o córtex cerebral esquerdo de Alex já estava comprometido por lesões irreversíveis", disse uma das coordenadoras do "caso Alex", Faraneh Vargha-Khadem, médica iraniana que deixou seu país há 20 anos, pouco antes da revolução islâmica de Khomeini (1979).
Nas palavras de Faraneh, a cirurgia foi "rudemente simples". Os médicos abriram o crânio do garoto e, com microbisturis e cauterizadores a laser, arrancaram o lobo esquerdo do cérebro de Alex. A recuperação durou mais de dois meses.
Recuperado fisicamente, Alex começou a surpreender os médicos. Em um ano, estava falando palavras de forma inteligível e começando a articular frases.
"Foi algo inimaginável para alguém com nove anos de idade. Funções que eram exclusivas do lado esquerdo começaram a se desenvolver no lado direito", disse Faraneh.
O córtex é a camada mais externa do cérebro, uma espécie de "casca" que envolve as partes mais externas. Mas é ali que se concentram o núcleo de todas as células nervosas, os neurônios.
Surpresa
A surpresa é explicável. A neurologia tradicional trabalha com o conceito de "plasticidade cerebral". Ou seja, os dois lados do cérebro podem desempenhar as mesmas funções até uma determinada idade.
O limite teórico é dez anos, mas, segundo Faraneh, não se conhecem casos após os seis anos.
Também existem limites para baixo. De forma geral, aceita-se que a dominância de um hemisfério sobre o outro não está definida até os seis ou sete anos de idade. Como no caso dos canhotos.
Ao ultrapassar a barreira dos dez anos, o ser humano dificilmente desenvolve em um lado do cérebro funções específicas de outro porque o "espaço", em tese, já está ocupado por tarefas próprias.
No caso de Alex, porém, sua dominância bilateral já estava determinada pela lesão decorrente da síndrome, diz Elizabeth Isaacs, pesquisadora do instituto.
O lado esquerdo concentra o chamado "centro da linguagem" (para a maioria dos destros). O aprendizado lógico de estruturas verbais e a construção do raciocínio se dá nesse lobo cerebral.
No lado direito é desempenhado o raciocínio mais básico, intuitivo. A linguagem simples dos bebês e a orientação espacial primária são desenvolvidas neste local.
No caso de Alex, passados cinco anos desde a cirurgia, seu hemisfério direito assumiu funções que pareciam estar fadadas a desaparecer com a extirpação de seu hemisfério esquerdo.
Dúvidas
Alguns pesquisadores ainda têm dúvidas sobre a "plasticidade" do cérebro de Alex.
John Marshall, neurologista da Universidade de Oxford, disse à revista científica "New Scientist" que há a possibilidade de Alex sempre ter tido a sua capacidade de falar contida no hemisfério direito.
"Ele poderia apenas não ter conseguido expressar a fala devido à confusão que havia no esquerdo", afirma Marshall.
Para o neurocirurgião Patrick Powell, que trabalha associado à Universidade de Leeds, a dúvida de Marshall é pertinente. "Pode ser um caso único na história médica, mas também pode ser apenas um caso comum de dominância trocada", diz Powell.
Faraneh rebate o argumento afirmando que, se a capacidade já estivesse instalada no lado direito, Alex formaria frases imediatamente após a cirurgia -o que só ocorreu um ano depois.
Mas, sem metade do córtex, é possível levar uma vida normal? "Normal, não. Porém, para sua condição e QI, Alex apresenta uma vida extremamente confortável", afirma Faraneh.
Por confortável entende-se o fim dos ataques epiléticos que o atingiam semanalmente, o desenvolvimento da fala e a frequência em uma escola especial.

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