São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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A bússola da subversão ambiental

GUSTAVO KRAUSE
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O saber ambiental é uma consciência crítica e um propósito estratégico" Enrique Leff Quem parar e pensar um pouco vai chegar à conclusão -para os mais conservadores uma conclusão aterradora e para os mais sensíveis uma conclusão desafiadora- de que o saber ambiental e sua projeção política -o ambientalismo- são as mais subversivas das questões com que a humanidade se defronta ao longo de sua evolução histórica. Se tocados pelo milagre da ressurreição, Nicolau -o autor da revolução copernicana- e Karl -o pai da incendiária profecia política montada no determinismo histórico- ficariam humilhados.
A engenharia econômica parece não ter limites para acumular, a engenharia política não teve, ainda, forças para distribuir e preservar. O resultado é que o luxo da minoria se sustenta sobre as bases frágeis dos lixos que afetam a maioria: o lixo ambiental e o lixo social.
É aí que entra a subversão ambiental que veio para ficar e para transformar, a partir da revogação de um pressuposto identificado por Leonardo Boff que diz: "No imaginário dos pais fundadores da sociedade moderna, o desenvolvimento se movia dentro de dois infinitos: o infinito dos recursos naturais e o infinito do desenvolvimento rumo ao futuro".
Em outras palavras: a humanidade caminhou e caminha com velocidade (aliás, a velocidade é a divindade explícita dos tempos modernos) numa rota de colisão. E aí chega à esquina civilizatória. Ou segue na direção tradicional, em ritmo frenético, e colide com limitações absolutas -limitações biofísicas à expansão econômica- ou muda o rumo. Por consequência, muda o projeto civilizatório, tendo como base o surgimento de nova consciência universal. Desta forma, a subversão ambiental reinventa a bússola do terceiro milênio.
Curioso é que a idéia ambiental, diferente de todas as idéias revolucionárias, não tem dono. É um vasto condomínio doutrinário. Também não é uma verdade revelada, traduzida por vulgatas. Como é novinha em folha, não tem a inspiração de velhos fantasmas. Ao mesmo tempo, é eterna porque está inscrita em cada estrela do firmamento ou no mais silencioso regato que corre protegido pela sombra das árvores.
A subversão ambiental como vetor de mudança na direção das coisas, dos fatos, das relações sociais, tem que ser ampla, geral e irrestrita. E é.
Começa pela subversão axiológica, porque bate de frente com um conjunto de valores cristalizados e dominantes. A idéia ambiental é um terremoto para a homogeneidade massificadora, porque dá musculatura e força ao valor das diversidades. Faz prevalecer o qualitativo sobre o quantitativo. Resgata a harmonia à medida que propõe uma disposição bem ordenada entre as partes de um todo. Harmonia é uma ordem autônoma, não imposta. O objetivo é fazer imperar a noção de equilíbrio sobre um desequilíbrio sistêmico produzido pelos "máximos": o máximo de consumo, o máximo de produtividade, o máximo de prazer, o máximo de fruição aqui e agora. E o que dizer da ética e da estética, valores que emprestam complexidade ao cálculo econômico de uma equação simplificada pelas relações do custo x benefício?
A racionalidade ambiental se distancia do "penso, logo existo" e acrescenta um "sinto" ou mesmo um "compartilho". Introduz a ética da solidariedade como um contraponto capaz de enfrentar as vulnerabilidades deste novo ator chamado ecocidadão, que bebe água que não sujou, respira o ar contaminado que não poluiu, é vítima da chuva ácida que não produziu, sofre com a mudança de clima que não provocou -enfim, é, a um só tempo, um cidadão emblematicamente global e profundamente frágil.
Na proporção em que mexe com a escala de valores estabelecidas, a idéia ambiental, também, produz novos saberes. Trata-se de uma pororoca epistemológica de que apenas parte dos pensadores e cientistas se deram conta. E muitos não se dão conta porque continuam vidrados nos seus microcosmos, frequentes vítimas da soberba que prende todos aos feudos do conhecimento. A interdisciplinariedade é uma das regras de ouro da nova racionalidade ambiental e, assim, perpassa as ciências naturais, a sociologia, a antropologia, a geografia, o urbanismo, o direito e todos os ramos do conhecimento humano. Valores, saberes e métodos atrelados à solução de problemas concretos são as duas pontas ou os dois sentidos do que Thomas Kuhn chama de paradigma. O novo paradigma é o anúncio de uma nova cultura, a cultura ambiental, a ser tomada pelo homem, incorporada pela sociedade, vivida como símbolo e como suporte para uma existência com significação.
A subversão ambiental fecunda um estilo de vida e fertiliza uma nova cosmovisão. Felizmente não pára por aí. A subversão tem um forte conteúdo político. Altera extraordinariamente as relações de poder mediatizados pelos mecanismos da democracia representativa, com desdobramentos que não se limitam às concepções e aos modelos teóricos, para alcançar e influir nas práticas governamentais.
Não é exagero afirmar que as organizações sociais estruturadas em instituições clássicas não absorveram a questão ambiental e, por consequência, resistem ou, quando não reagem, não sabem lidar com a dimensão ambiental. Esta dimensão tem no pluralismo, na diversidade cultural, na participação democrática e gestionária seus pilares políticos. Trata-se de um conteúdo oxigenador, porém ameaçador às estruturas do poder.
As razões são muitas. Para não ir muito longe, basta lembrar que, na Grã-Bretanha vitoriana, as manifestações de um ambientalismo incipiente apareciam como subproduto dos avanços das ciências naturais, da expansão do industrialismo e do esteticismo romântico na literatura.
Bem mais tarde é que o movimento assume sua identidade histórica e vigor militante, como herdeiro da vaga da contracultura e do antiestablishment dos anos 60. Foi reativo, heróico, contestatório e confrontacional. E tinha mais que ser assim.
Para assustar o convencionalismo político, não é necessário investigar outras marcas genéticas do ambientalismo. Estas já são suficientes. Não é por outro motivo que, até mesmo nos países de tradição democrática, o movimento é olhado de forma enviesada.
No entanto -convenhamos-, são inegáveis os avanços da subversão ambiental, seja pela ampliação do movimento e disseminação da consciência social, seja pelo seu crescente grau de eficácia, seja pela sua penetração institucional nos aparelhos de Estado. Ainda assim -especialmente nos países emergentes-, a dimensão ambiental carece de centralidade nas decisões que definam um projeto estratégico de desenvolvimento.
Tudo o que foi dito até agora constitui a moldura histórico-política dentro da qual se situa e se movimenta -em particular no caso brasileiro que me é dado conhecer-, o gestor da questão ambiental. Ou melhor dizendo: gestor da subversão ambiental.
Gerir a subversão ambiental é se colocar no vértice das tensões e de conflitos de toda ordem. Aliás, nada mais compreensível, dado que o choque passa pelas visões do mundo, padrões culturais, chegando até aos mais prosaicos métodos de gestão.
É preciso, em primeiro lugar, perceber a realidade dual brasileira, do ponto de vista da sua formação política e institucional. Trata-se de um país construído de cima para baixo e de dentro para fora do aparelho estatal. Assim foi com os partidos políticos. Assim foi com o sindicalismo. Assim foi que, sob os auspícios do Estado nacional desenvolvimentista, construiu-se uma ideologia de crescimento econômico.
À sociedade -o outro pólo do dualismo- restava se exprimir debilmente por meio dos canais clássicos de representação ou emitir vagidos nos curtos espaços e tempo criados pelos espasmos democráticos.
Pois bem, a despeito da história recente registrar um considerável avanço nas organizações sociais, um significativo fortalecimento dos movimentos de base, tendo como suporte o amadurecimento da cidadania, é forçoso reconhecer dois fatos: o primeiro é que estes movimentos não são suficientemente fortes e articulados de modo a internalizar reivindicações e influir na direção das políticas públicas, exceto quando impulsionados corporativamente; o segundo é que o mais robusto movimento e a mais consistente ideologia é a ambientalista, até porque não se confunde com uma classe, um partido ou um estrato social definido, ao que deve se adicionar sua amplitude transnacional.
É isto que torna o ambientalismo intérprete de um projeto civilizatório, potencialmente capaz de introduzir a dimensão ambiental no processo de tomada de decisões.
Não param por aí os obstáculos a serem ultrapassados no sentido de assimilar a questão ambiental nas decisões estratégicas de governo. Mais três dificuldades, imbricadas entre si, desafiam o gestor ambiental dentro do sistema de governo. São elas: a tradição do planejamento governamental, a ideologia obreirista e a matriz gerencial do setor público, compreendida aí a liturgia do processo decisório.
Em síntese, e sem querer levantar aspectos legitimadores das políticas públicas, estas dificuldades agudizam uma visão setorial dos espaços de intervenção. Em matéria de planejamento, a tradição vem desde a missão Cookie, em 1942, passando por várias experiências, batalhas cruentas dos "ismos" (estruturalismos x monetarismos), e o que ficou foi a ênfase setorial, em que cada agência governamental permanece contemplando seu próprio umbigo. Tudo medido à régua e compasso, objetivos e metas, para superar "pontos de estrangulamento" do crescimento econômico.
Por sua vez, coube à ideologia obreirista transformar tocador de obra em estadista, perfil quase sempre tonificado pelas subideologias do "rodoviarismo" e do "barragismo", que, por sua vez, são ausentes de uma cultura monumentalista tão perdulária quanto inútil.
Dentro deste esquema, a liturgia decisória é definida pelo mínimo de reflexão e avaliação dos impactos e pelo máximo de rapidez para decidir e fazer. Não raro, as ações se perdem no meio do caminho ou produzem questionáveis benefícios.
Entretanto -reconheça-se- nem tudo são dificuldades.
A perspectiva é dada pelo singular momento histórico de profundas mudanças por que passa o Brasil. A gestão da subversão ambiental, a despeito dos limites, tem pela frente oportunidades. A oportunidade é de consolidar as convicções nacionais quanto ao propósito estratégico da dimensão ambiental.
Certamente já estivemos bem mais distantes de um projeto de sociedade como expressão de um querer coletivo. Durante muito tempo um projeto de Nação foi definido (e a cobrança continua) como feito de governo ou elaboração de instituições iluminadas, traduzidas em binômios ou apodos, como foi o caso do Brasil-potência.
O querer coletivo, como suporte de um projeto de sociedade, é a apropriação de cada um e do conjunto dos cidadãos do seu próprio destino, e neste destino não parece difícil identificar as quatro dimensões de uma sociedade desejada: democrática, equitativa, eficiente e... sustentável. Limito-me ao conceito da última dimensão -a sustentabilidade- e, para tanto, utilizo o preciso conceito de Eduardo Viola: "Uma sociedade sustentável é aquela que conserva uma parte significativa do estoque de capital natural e substitui -compensa a parte usada- com o desenvolvimento de capital tecnológico, permitindo assim o desenvolvimento das gerações futuras. Numa sociedade sustentável o progresso é medido pela qualidade de vida (saúde, longevidade, maturidade psicológica, educação, ambiente limpo, espírito comunitário e lazer criativo) em vez do puro consumo material".
Mais cedo ou mais tarde, as transformações que se operam na sociedade brasileira baterão nas portas das burocracias estatais. Quanto mais cedo melhor. É o que clama a cidadania e pelo que luta incansavelmente o presidente Fernando Henrique Cardoso.
Aos gestores da questão ambiental Brasil afora cabe empreender uma luta permanente para gerar "uma cultura e uma solidariedade ambiental", com as armas singelas da convicção firme, da sensibilidade e da percepção para as diversidades e para o pluralismo político, tudo sob a égide de uma palavra de ordem atualizada: "Ambientalistas de todo o mundo, uni-vos!"

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