São Paulo, domingo, 2 de junho de 1996
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Uma popfilosofia para o século 21

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR-ADJUNTO DO "MAIS!"

"Uma fulguração se produziu que receberá o nome de Deleuze. Um novo pensamento é possível, novamente o pensamento é possível... Um dia, talvez, o século será deleuziano" -declarou em 1970 o filósofo Michel Foucault sobre seu amigo, o filósofo Gilles Deleuze.
Mais que uma cortesia, a frase, dita àquela altura pelo já célebre autor de "As Palavras e as Coisas", ainda conserva seu impacto. Anos depois, Deleuze, reconhecendo o "humor diabólico" do amigo, respondeu com sua habitual modéstia: "Talvez ele estivesse querendo dizer que eu era o mais ingênuo entre os filósofos de nossa geração". Seja com sentido profético ou não, a celebridade de Foucault chamou a atenção para a novidade da obra de Deleuze.
O fato é que Deleuze criou o mais complexo exame das forças que movem ou que imobilizam a vida no mundo contemporâneo. Um mundo que se dirige para a dobra (para utilizar um conceito deleuziano) do milênio e que exige uma compreensão e uma crítica a par de suas transformações.
Na conclusão do século, porém, o filósofo não está mais presente. Deleuze se suicidou em 4 de novembro do ano passado, saltando da janela de seu apartamento de terceiro andar em Paris.
Para homenagear o pensador e examinar as extensas conexões de sua obra, acontece a partir do próximo dia 10, no Rio, e nos dias 13 e 14 em São Paulo, os "Encontros Internacionais Gilles Deleuze", organizado pelo filósofo Eric Alliez (leia programação nesta página). O evento, que em São Paulo tem o apoio da Folha, vai reunir 35 professores e pesquisadores, 14 deles de fora do Brasil. Entre os convidados internacionais estarão os filósofos Jacques Rancière e Gérard Lébrun, além do crítico Fredric Jameson, e entre os brasileiros os filósofos Bento Prado Jr. e Marilena Chaui.
Pensar o presente
Desde "O Anti-Édipo", escrito em parceria com o psicanalista Félix Guattari em 1972, a obra de Deleuze, antes voltada para trabalhos de análise histórica de clássicos da filosofia, orientou-se para questões políticas e éticas.
Este clássico do pensamento rebelde fez também com que sua obra vazasse os muros acadêmicos e servisse de alimento aos discursos liberacionistas e contraculturais da época.
Segundo Eric Alliez, "à medida que trabalha no campo da história da filosofia, em certos momentos com uma proximidade muito grande de Foucault, Deleuze se convence sempre mais que a determinação da identidade filosófica se faz na relação com o presente. Nessa abordagem da filosofia como uma ontologia do presente, para retomar uma expressão de Foucault, as questões práticas, éticas e políticas, vão adquirir uma presença e uma força sempre maior até sua explicitação após as revoltas de 68".
"O Anti-Édipo" amplia para um novo campo o projeto deleuziano de corrosão do princípio de identidade já desenvolvido em livros como "Lógica do Sentido" (de 1968) e "Diferença e Repetição" (de 1969).
Tratava-se agora de analisar os processos de controle instaurados pelo capitalismo e de criticar os reducionismos da subjetividade restaurados pela psicanálise. Por um lado, a esquizoanálise (conceito formulado pelos autores como alternativa à psicanálise) propõe a liberação do desejo das formas codificadas do teatro familiar protagonizado pelo triângulo papai-mamãe-Édipo. Por outro, restitui ao desejo uma potência de produção e de transformação livre de controles, isto é, capaz de promover uma ação revolucionária.
Segundo o sociólogo Laymert Garcia dos Santos, " 'O Anti-Édipo' mantém seu interesse tanto quanto o capitalismo continua a ser uma poderosa máquina de produção de esquizofrenia e conserva intacto o poder de imobilizar as pessoas e impedir que elas se dêem conta do que acontece".
As propostas deste livro foram recebidas como manifestações do avanço irracionalista na filosofia. A questão é que ele desenvolvia pontos teóricos já formulados por Deleuze em sua crítica da imagem tradicional do pensamento.
Contra as regras do paradigma clássico instaurado por Platão, Deleuze desconfia da idéia de verdade. Enquanto continuarmos a pensar que a verdade se funda a partir da coincidência com um ideal perfeito e imutável, como Platão, toda mutação, todo devir e todas as contingências da realidade serão encaradas como uma mentira e viveremos eternamente no mundo da abstração. "Devemos voltar a crer no mundo" é uma frase tardia de Deleuze, mas que se aplica com exatidão à crítica dessa imagem do pensamento.
Na perspectiva política, escapar dos limites estreitos da identidade fixa corresponde a escapulir das formas de controle e de exploração determinadas de cima pelo capital.
Construir uma filosofia da diferença ou elaborar uma esquizoanálise coincidem no projeto de assegurar para a vida linhas de fuga que sirvam para escapar dos determinismos superiores e transcendentes, como Deus e o Estado.
Longas unhas
Gilles Deleuze nasceu em 18 de janeiro de 1925 em Paris. Aos 19 anos, foi estudar filosofia na Sorbonne. Ali foi aluno de filósofos influentes como Ferdinand Alquié, Georges Canguilhem e Jean Hyppolite. Após se formar, seguiu carreira como professor em ginásios e começou a publicar trabalhos de história da filosofia.
Após um período como professor universitário em Lyon, voltou a Paris, em 69, para participar da formação do departamento de filosofia em Vincennes, refúgio dos mestres e estudantes esquerdistas após Maio de 68.
É dessa época o encontro decisivo com Guattari. Numa entrevista ao jornal "Libération" em 1991, Deleuze o reconstituiu: "No início de nossas relações, foi Félix que me procurou. Eu não o conhecia. Creio que o que mais me impressionou foi o fato de ele não ser filósofo por formação e de encarnar a filosofia num estado de criatividade". Juntos os dois escreveram quatro livros, e as relações foram interrompidas pela morte de Guattari, em 1992.
Entre as marcas pessoais de Deleuze os testemunhos evocam as unhas longas e a voz rouca.
A respeito do tamanho de suas unhas, Deleuze esclareceu que não se tratava de um mau hábito. "Dá para notar, observando a extremidade dos meus dedos, que me faltam as impressões digitais normalmente protetoras, de tal modo que tocar um objeto com a ponta dos dedos me dá uma dor nervosa que exige a proteção de unhas longas", escreveu na "Carta a um Crítico Severo", publicada em "Conversações".
Já a rouquidão era consequência dos problemas respiratórios que atacavam o filósofo e cujo agravamento é um dos motivos a que se atribui o seu suicídio. Deleuze sofria de uma tuberculose crônica, agravada pelo fumo excessivo. No fim da vida, sofreu uma traqueostomia e respirava apenas com o auxílio de um tubo de oxigênio.
Popfilosofia
Em uma de suas mais irreverentes expressões, Deleuze definiu o que fazia como "popfilosofia" (a expressão aparece em "Dialogues", "Mil Platôs" e "Conversações"). Mas não associava esta idéia a qualquer tipo de facilidade. Qualquer um que tenha lido um texto dele sabe que a tarefa é árdua. Entenda-se pop aqui como uma criação que se alimenta sem preconceitos de fontes heterogêneas.
Seu projeto filosófico se define como a constituição de uma teoria das multiplicidades, capaz de compreender cada acontecimento a partir de sua singularidade, de sua contingência e de seu devir.
Em sua execução, esta teoria das multiplicidades partiu em busca de discursos que funcionam como novos paradigmas. Na arte e na ciência, Deleuze vai captar articulações de sua teoria com outros pensamentos contemporâneos.
Pensamento que detecta na arquitetura de "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust, nos deslizamentos de significado criados por Lewis Carroll, na distorção dos corpos nos quadros de Francis Bacon e na combinatória que a imagem cinematográfica faz entre o espaço e o tempo.
Em relação aos saberes científicos contemporâneos, observa o físico Luiz Alberto Oliveira, "Deleuze os traslada, dá a eles um novo viés em seu discurso e ao mesmo tempo enriquece a prática da filosofia". As totalidades abertas presentes na teoria do caos, na neurobiologia e na cosmologia são apenas exemplos ocasionais de discursos científicos que atravessam os textos de "Mil Platôs".
E esta pluralidade transborda a filosofia e inspira outros discursos. Para o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, pesquisador de sistemas de pensamento indígenas, a obra de Deleuze "abre inúmeras perspectivas sobre aspectos de pensamentos fora da grande tradição".
Não só em seu aspecto teórico Deleuze armou um sistema de multiplicidades. É sobretudo nas suas fontes, naquilo, segundo sua fórmula, "que dá o que pensar", que se pode encontrar o sentido do popfilosofar. A título de exemplo, num livro difícil como "Mil Platôs" acham-se citações que vão do músico erudito Pierre Boulez à compositora pop Patti Smith, de textos de Kafka e de Henry James aos do guru Carlos Castañeda.
Segundo Olgária Matos, professora de filosofia na USP, "o que Deleuze fez pode ser definido, como ele mesmo indica, como uma heterogênese, uma recriação dos conceitos que deve conter sua própria história, mas também algo novo".
Esta orientação plural foi a força da qual se alimentou Deleuze para elaborar seu pensamento da diferença. Uma filosofia ainda capaz de espantar o torpor e de restituir a vontade de inventar o mundo.

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