São Paulo, segunda-feira, 3 de junho de 1996
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Pingos nos "is"

JOÃO SAYAD

A minha faculdade, a FEA da USP, fez 50 anos. Tem defeitos e qualidades como todas as coisas de 50 anos. A maior qualidade é o pluralismo.
Para comemorar o aniversário, chamou gente de todo o mundo para discutir a globalização: Delfim, da FEA; Belluzo, da Unicamp; Chesnais, de Paris; Sachs, dos EUA; Frenkel, da Argentina, e outros.
Globalização é o nome escolhido para o pedaço da história que estamos vivendo. Na grande imprensa e para o público em geral, a globalização é vista como a vitória do mercado e da democracia, o resto é passado. Será que chegamos ao fim da história? O que é globalização?
1) Apesar de você poder comprar vinhos franceses no armazém da esquina, o comércio de mercadorias nos anos 90 é ainda menor, com relação à produção mundial, do que os níveis observados no final do século passado.
Lembre-se que em 1900 as estações de estrada de ferro brasileiras vinham inteirinhas da Inglaterra, eram muito bonitas e estão aí até hoje, em Bananal, no Vale do Paraíba, ou em São Paulo, a Estação da Luz.
As estatísticas são do professor Paul Krugman, do MIT. O comércio internacional cresceu, mas não é o movimento característico da globalização.
2) O que está crescendo rapidamente nos últimos anos são os investimentos diretos no exterior. Crescem mais rapidamente do que o comércio de mercadorias. É a EDF comprando a Light, a AT&T competindo por celulares no Brasil, a McDonald's se instalando na praça da Espanha, em Roma, e os bancos, que estão no mundo inteiro.
3) Os investimentos financeiros crescem mais rapidamente do que os investimentos diretos. Não é fato novo. No final do século passado e neste século, até o final dos anos 20, a internacionalização do capital financeiro também foi muito grande.
Em 1930, o mundo passou por profunda crise de desemprego que mudou o curso da história.
4) No período 1945-1979, por causa da Grande Depressão de 30 e pela ameaça comunista, o mundo capitalista modificou a política econômica, intervindo nos mercados financeiros, regulando as relações entre capital e trabalho, restringindo a conversibilidade das moedas e praticando juros menores.
O crescimento foi rápido, o desemprego, baixo, e a inflação, crescente. Nazismo na Alemanha, New Deal e Plano Marshall no pós-guerra, Getúlio no Brasil. Essa fase foi superada.
A partir das idéias dos monetaristas, o mundo passou a considerar a inflação como problema mais sério do que o desemprego, que passou a ser considerado "natural" e cresceu muito. No mundo globalizado, a inflação é baixa; o desemprego, alto.
5) O maior sucesso econômico do século é, de longe, o Japão, que na minha juventude era considerado país subdesenvolvido e descrito no filme "Casa de Chá do Luar de Agosto", em que Marlon Brando se apaixonava por exótica "nativa".
Hoje o Japão é a economia que influencia todo o Sudeste Asiático, e o "Império dos Sentidos", o filme japonês mais conhecido.
O desemprego aberto é muito pequeno no Japão. O sucesso do Sudeste Asiático depende do sucesso japonês.
6) Os bancos e as empresas japonesas se organizavam no passado em "zaibatsus". Hoje se organizam em "keiretsus".
A primeira coisa que o general McArthur fez ao invadir o Japão foi impor a lei antitruste norte-americana ao país vencido.
Depois disso, os norte-americanos começaram a duvidar de que a lei fosse boa para os Estados Unidos. Se é boa a lei, por que foi imposta pelo general ao país derrotado? O Cade brasileiro deveria estudar o assunto.
7) O Japão tem organização muito parecida com mercado, mas muito diferente, com bancos de desenvolvimento, proteção comercial, subsídios, oligopólios e cooperação entre empresas e entre empresas e bancos.
8) Os países-inveja do Sudeste Asiático mais bem-sucedidos são Cingapura, uma cidade-estado autoritária; Taiwan, uma ilha cheia de empresários que há apenas 50 anos fugiram da China continental; a Coréia, que está dividida entre Norte e Sul e foi objetivo estratégico norte-americano desde 1954; e Hong Kong, uma cidade-porto paraíso de capitais financeiros.
O Brasil poderia copiar apenas o caso de Hong Kong se entregasse o Rio de Janeiro, que se parece com a cidade anglo-chinesa, embora muito mais bonita, para os ingleses.
9) A melhor coisa dos países do Sudeste Asiático -que, aliás, poderíamos copiar- foram os investimentos em tecnologia e educação, que não foram determinados pelo mercado, mas pela visão estratégica dos seus governantes e pela tenacidade dos orientais. Não parece relacionado a qualquer coisa que se chame mercado.
10) A China tem sido muito citada como caso de sucesso. Para os brasileiros da minha idade, a combinação ditadura com capitalismo não é aceitável. Os investidores estrangeiros explicam a combinação chinesa como resultado da paciência oriental, que primeiro aceita um pedaço do fim da história, o mercado, e bem mais tarde o outro pedaço, a democracia. No Brasil, não funcionou.
Acadêmicos deveriam fazer pesquisa sabendo que são dominados pelas ideologias da época. Por dever profissional, deveriam fazer grande esforço para ler e ouvir os oponentes.
Marxistas deveriam tomar café da manhã com monetaristas; freudianos, com junguianos; islamitas, com judeus.
Talvez assim pudéssemos discutir humildemente o que os novos tempos trazem de bom e de ruim, com alguma esperança de influenciar o mundo, suave, delicada e imperceptivelmente. Ou, pelo menos, entender o que está acontecendo.
O mundo não seria diferente. Mas as discussões seriam mais interessantes.

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