São Paulo, segunda-feira, 3 de junho de 1996
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Juanita, a menina inca com 500 anos de idade

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O primeiro encontro com sua imagem é um choque. Um choque de humanidade. A menina Juanita, sacrificada há 500 anos no monte Nevado Ampato, no Peru, parece nos contemplar do fundo de suas órbitas.
O cientista que a encontrou na montanha, Johan Reinhard, a descreve como uma garota em torno de dez anos, com longos cabelos negros, um pescoço fino, cheio de graça, e braços musculosos.
Juanita foi sacrificada num ritual. Pela beleza de sua roupa marrom-avermelhada, tudo indica que ela veio de Cuzco, o coração do império inca.
Eles cultuavam algumas montanhas como deuses. Ampato fica ao lado do vulcão Sabancaya. Das alturas vinha a água que irrigava as plantações e garantia a vida, mas delas descia também o cinza das ameaçadoras erupções.
Ela foi sacrificada para acalmar os deuses da montanha. Subiu levada pelos sacerdotes e, possivelmente, seguida por uma multidão que dançava e cantava.
Graças a Juanita, enviada como uma mensagem através dos séculos, a civilização inca ganha nova vida. O arranjo dos objetos deixados em torno de seu corpo revela uma reverência ao céu, à terra e às suas profundezas: estatuetas religiosas, folhas de coca, vestígios de milho.
Por acharem talvez que ela cresceria na outra vida, os incas colocaram nela ornamentos do tamanho adulto. Mais tarde, duas múmias também encontradas nos mesmos montes gelados reforçariam essa suposição: um menino e uma menina foram enterrados com equipamentos que usariam caso se tornassem um casal, objetos usados após o casamento.
Juanita foi sacrificada num ritual, agora é jogada na arena da ciência. Radiofotografada e submetida a exames de DNA, até as paredes de seu estômago serão objeto de pesquisa, para determinar a dieta dos incas.
Houve até quem quisesse simbolicamente possuir a múmia e ter filhos com ela: pesquisadores que se apresentaram para fertilizar os óvulos de Juanita e tentar obter uma pessoa daí.
Depois, Juanita passou a ser um tema da política internacional. O presidente do Peru a levou aos Estados Unidos, onde ficou exposta, com a presença de Clinton e Hillary. Uma boa foto, oportunidade para a campanha de Clinton, e Juanita, apesar de tudo, continua nos olhando do fundo de suas órbitas, com a gravidade das crianças sacrificadas ao longo da história.
Mas ainda assim o ritual é uma violenta contradição com a riqueza de sua arquitetura, com a qualidade de seus tecidos. Juanita tornou-se uma embaixatriz milenar de mistura de civilização e barbárie da qual ainda não conseguimos nos livrar.
Quando vejo Juanita repousando num lençol amarelado, as luzes iluminando com delicadeza seu rosto, recapturando o antigo brilho dos cabelos, imagino sua imagem correndo o mundo, espraiando-se pelo Brasil.
Ao desembarcar em nosso país, Juanita faria mais do que todas as campanhas contra a morte de crianças puderam fazer com seu discurso.
Ela é um legado da humanidade, a mensagem que ficou congelada no tempo. Os incas achavam que Juanita cresceria na outra vida. Os adereços continuam grandes para seu pequeno corpo, mas ela cresceu mais do que qualquer outro inca. É uma inacreditável recém-chegada ao nosso fim de século.

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