São Paulo, terça-feira, 4 de junho de 1996
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O sistema da mortandade

JANIO DE FREITAS

A mortandade de doentes renais em Pernambuco e a mortandade de abrigados em asilo no Rio levaram, ambas, à conclusão generalizada de que foram permitidas pela falta de fiscalização. Não deixa de ser verdade, mas uma verdade questionável sob vários aspectos. E, no final da história, pequena em comparação com a verdade maior contida nestes e em outros fatos de igual monstruosidade.
No que respeita à saúde, e não só a ela, os brasileiros estão diante de uma contradição que parece insolúvel: onde não há fiscalização que os proteja, tudo de pior lhes pode acontecer; mas, ainda que houvesse nas chamadas autoridades propósitos de fato fiscalizadores, não haveria como efetivá-los na medida necessária.
Como fundo de tal impossibilidade, não é preciso considerar a conhecida falta de recursos governamentais para atividades deste gênero. É certo, sim, que o governo federal gastou com viagens, no ano passado, meio bilhão. Mais conhecida do que esta cifra, porém, é a velha recusa dos governos (federal, estadual, municipal) a destinar dinheiro e demais recursos à fiscalização seja do que for.
Antes do problema de verbas, há um fato irremediável: o número de entidades e das atividades nelas desenvolvidas, na área de saúde, no país de tão grandes dimensões. Aí está, ao que tudo indica, um fator impeditivo de fiscalização eficiente na amplitude necessária. Mesmo que as dotações orçamentárias se tornassem generosas, e o aparelho administrativo se reformasse moral e tecnicamente, o que se teria de melhor seria alguma fiscalização eficaz em parte do dispositivo de assistência à saúde. Sempre, então, com o risco de mortandades onde a fiscalização não chegasse. Além de países igualmente grandes, são numerosos os pequenos que oferecem às suas populações muito mais entidades de assistência à saúde do que as existentes no Brasil. E neles não acontece o que se passa aqui, seja nas entidades públicas ou nas particulares. Estaria negada, assim, a impossibilidade de fiscalização geral e permanente? Não.
Em qualquer daqueles países, a fiscalização é forçosamente parcial. Mas a responsabilidade social, expressa pela consciência aplicada a qualquer atividade profissional de alcance público, é lá a realidade que faz a diferença. Realidade não absoluta, nem sequer suficiente para impedir práticas abomináveis. Bastante, porém, para fazer com que a pressão do correto sobre o incorreto funcione, ela só, como fiscalização, como educação, como exigência. E quando a pressão não resulta, não há por lá o que aqui patrocina todas as irregularidades e todos os crimes dos bem remunerados: a impunidade.
Os governos sucedem-se, mas a concepção burocrática é sempre a mesma. Nenhum se ocupou de inculcar responsabilidade social. Deve ser pelo mesmo motivo que a nenhum ocorreu o desejo de combater a impunidade dos chamados colarinhos brancos.

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