São Paulo, sábado, 8 de junho de 1996
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Escravidão e reforma agrária

RUBENS RICUPERO

Em plena África do Sul abro o "Financial Times" e o Brasil me atinge como um soco no estômago. Uma foto dramática de trabalhadores escravos liberados de um latifúndio de Rondônia.
Alguns deles, dizia a reportagem, acabaram por voltar à fazenda, pois não havia outro trabalho para não morrer de fome.
Lembrei de outra foto, anos atrás. Numa batida policial em morro do Rio de Janeiro, uma fileira de homens, quase todos de cor, eram conduzidos com cordas no pescoço. A PM e os capitães-do-mato, os presos de hoje e os escravos fugidos de ontem, a foto e as gravuras de Debret se fundiam numa só imagem dolorosa e trágica do fracasso em nos libertarmos do nosso passado.
Joaquim Nabuco foi dos raros brasileiros que sempre viu nítido o elo entre escravidão e terra. Em inesquecível e portanto deliberadamente esquecido discurso no Recife, dizia não bastar dar liberdade ao escravo. Era preciso dar-lhe terra e os meios para trabalhá-la.
Não foi ouvido nem então nem hoje. Talvez porque os dirigentes do seu tempo, assim como os que vieram depois, correspondiam ao que dizia Nabuco, repetindo Hegel: que o pior da escravidão era de aviltar e degradar não só o escravo mas sobretudo o senhor do escravo.
É estranho, perturbador, como permanecemos prisioneiros de nossa história, como estamos quase que condenados a repetí-la sem cessar.
E até mesmo sem nos darmos conta. Quantos, por exemplo, entre nós, percebem a sugestiva semelhança, na atitude e nos argumentos, entre a resistência à abolição do Império e a recusa da reforma agrária na República?
Dizia-se, então, sobretudo após a lei do Ventre Livre, que era só uma questão de tempo, chegando alguns a insinuar que lá por 1930 os últimos cativos poderiam ser resgatados pela metade do preço.
Fazê-lo antes seria irresponsável precipitação, com o risco de arruinar a economia, ainda dependente do "elemento servil". Olvidava-se que, anos antes, ao cogitar-se da proibição do tráfico, ameaçara-se com o mesmo argumento da crise da economia.
Na verdade, ocorreu o contrário: os capitais liberados pelo fim do tráfico impulsionaram um grande momento de aceleração do crescimento econômico.
Em nossos dias, o gradualismo também virou moda. Afirma-se que a capitalização e modernização da agro-indústria, a queda das taxas demográficas e de fertilidade darão cabo do problema de forma indolor, imperceptível. Esse asséptico e "tecnicamente correto" quadro agrário só é estragado pelos trabalhadores rurais que teimosamente insistem em serem massacrados pelas polícias e pelos jagunços.
Da mesma forma, há um século atrás, foram as fugas maciças de escravos em São Paulo e a altiva recusa do Exército em persegui-los que forçaram o governo imperial a propor e o Parlamento a aprovar a Lei Áurea, apesar da oposição até o fim do "grupo do coice", liderado pelo deputado Paulino Soares de Souza, o "primo Paulininho" dos fazendeiros fluminenses.
Em contraste, na África do Sul, onde a iníqua lei de terras de 1913 e o "apartheid" confinaram 87% da população (os negros) em 13% das terras (as piores), assiste-se a uma "revolução silenciosa": a maior transferência de terras da história do país. O processo é pacífico, consensual, facilitado por créditos e subsídios oficiais. Também já há quem denuncie os subsídios em nome do equilíbrio orçamentário. Os defensores dizem, porém, com razão, que se trata apenas de reparação tardia do confisco de que foram vítimas os africanos.
Lembrei num discurso em pretória, a propósito da espoliação colonialista da África, os versos de T.S. Eliot: "Seja o que for que herdamos dos afortunados, nós antes o arrancamos dos derrotados". Terá sido diferente no Brasil?
A diferença que vejo é que, ao aprovar a nova Constituição, os sul-africanos tiveram a coragem de aceitar uma "cláusula de terras" que facilita a reforma agrária.
E o nosso Congresso, quando será capaz de fazer o mesmo, superando de vez por todas aquela herança da nossa história que Nabuco estigmatizou, ao dizer que o Brasil era uma nação sem povo, pois uma massa de escravos jamais seria um povo?

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