São Paulo, domingo, 9 de junho de 1996
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Poemas da face única

SILVIANO SANTIAGO

Ao reconstruir no Engenho Novo a antiga casa materna de Matacavalos, Dom Casmurro diz que o fim evidente da obra era o de atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Mas logo descobre que falta alguma coisa na cópia exata da antiga casa materna: se o rosto do morador é o mesmo, a fisionomia é diferente. Uma das facetas mais extraordinárias de Drummond é a generosidade com que foi acolhendo, durante seus 66 anos de poesia, novos temas, novas questões e novos estilos, emprestando-lhes o sabor e o saber especial da sua versátil personalidade poética. O rosto de Drummond pode ter sido igual no transcorrer da sua carreira poética, mas as fisionomias, até no mesmo período estilístico ou histórico, até no mesmo livro, são várias, multifacetadas, ambivalentes, rigorosamente múltiplas. Isso está claro desde o poema que abre seu primeiro livro publicado, "Alguma Poesia" (1930): "Poema de Sete Faces". São sete as sorridentes, irônicas e auto-irônicas faces do "dado" humano quando ele é rolado pelo feltro da mesa poética. "Vai, Carlos, ser gauche na vida", é o que lhe disse o anjo torto.
Sua última coleção de poemas, planejada enquanto em vida e agora editada pela Record, abre sintomaticamente com um texto que contradiz o mais antigo poema publicado em livro: "Unidade". Nas últimas duas décadas de vida, pode-se dizer que o grande esforço do poeta foi o de procurar o ponto misterioso e aparentemente inacessível, espécie de Pandora machadiana, ou de aleph borgesiano, que desse conta da diversidade rebelde da vida ao nascedouro dela. Quanto mais o homem se distancia desse ponto, mais se aproxima dele. Eis aí o que Drummond, nos poemas de "Farewell", chama com muita propriedade de "A Ilusão do Migrante":
"Quando vim, se é que vim
de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum".
Drummond lê genealogias como um detetive de conto de Edgar Allan Poe. Interpretados com o cuidado que merecem, os poemas hoje enfeixados sob o título geral de "Boitempo", que "A Ilusão do Migrante" retoma na presente coletânea, caminham passo a passo em direção a uma "Raiz" (ver "Boitempo 2"), onde o ser múltiplo (ou seja: o que se julgava outro e atrapalhado, como no poema "O Malvindo") se reencontraria com a singela unidade do "mesmo", que, ao lhe dar origem, o explicou, o explica e o explicará até nas suas antigas artimanhas de filho rebelde:
"Os pais primos-irmãos
avós dando-se as mãos
os mesmos bisavós
os mesmos trisavós
os mesmos tetravós
a mesma voz".
Esse périplo, esse "caminhar de costas", é o do filho pródigo. Encontrará ele, nas abandonadas e finalmente recuperadas "tábuas da lei mineira de família", religião e razão, modo de ser e de sentir, modo de devir. Todo esse saber familiar estava ali, à sua espera, sem que se desse conta dele. Bastou o poeta querer, querer saber quem é (o singular aqui é plural), para que, como num passe de mágica, todo o passado do clã ressuscitasse em esplendor e miséria, em glória antiga e decadência no presente.
Mas a história única de "Boitempo" é a história humana de um clã, os Andrade, história extrovertidamente apaixonada e datada pelos eventos de uma região, Minas, e de um país, o Brasil, com geografia delimitada, nas fronteiras rurais, pelas "braúnas" e, nas fronteiras urbanas, pelas montanhas pulverizadas de minério de ferro. Como o poema "As Identidades do Poeta", no presente genealógico ele prefere "ignorar/ esse enigma chamado Fernando Pessoa", que caminha pelas ruas da Baixa "em companhia/ de tantos si mesmos".
A unidade que o poema de "Farewell" busca extrapola os limites de uma vida humana, da história de um clã; ela engloba tudo o que vive e existe sobre a face do planeta. A dicção poética drummondiana, em geral terra-a-terra, alimenta-se neste último livro de inesperado vôo cósmico, lembrando investidas semelhantes às do poeta negro simbolista Cruz e Sousa. Nada do que é do homem é privilégio dele, diz o poema. Até mesmo a dor não é privilégio nosso. Também sofrem as plantas, as flores e as pedras, pois "esta é a chave da unidade do mundo".
No poema "Acordar, Viver", volta a perguntar sobre a matéria tristonha dos dias que se sucedem, a repetir hoje as coisas ásperas de ontem: "Como acordar sem sofrimento?/ Recomeçar sem horror?".
Os poemas que Drummond escolheu para as páginas iniciais de "Farewell" são como a flor do poema "Unidade": há neles "uma queixa abafada/ em sua docilidade". Assim é que o velho poeta sente a vida e o modo como responde, quando tocado por "mão inconsciente". Seria essa mão inconsciente a da "mais indesejada das gentes"? a da morte próxima? Não estamos enganados. Se passamos à leitura do poema seguinte à "Unidade", o jogo com os adjetivos de "carne" ("envilecida", "encanecida", que lembram outro, mais óbvio e, por isso, ausente do poema, "envelhecida") traz de volta humor corrosivo e erotismo, lado a lado. Numa espécie de pacto do homem envelhecido com o Diabo, à semelhança do feito pelo dr. Fausto na Idade Média, o poeta ambiciona o consolo do amor. Só que o Diabo, no poema de Drummond, pode apenas oferecer à carne envilecida, encanecida, um simulacro feminino de graça e de beatitude que, bem medida a realidade, é o aroma que se espalha "de flores calcinadas e de horror".
Versos tristes e desesperançados, sem dúvida, que ecoam ao final do livro, nos versos do poema "Restos", onde "O Amor, o pobre amor estava putrefato". Talvez seja por essa razão que, em outro texto, o poeta acabe preferindo o sono à vigília, porque durante aquele "não existe vida/ e eu quedo inerte sem paixão". Pior: "Não mais o sonho, mas o sono limpo/ de todo excremento romântico". Mais dolorosos e sofridos são os versos finais do curto e claustrofóbico poema "Liberdade". Ali se diz, primeiro, que o pássaro é livre na prisão do ar. Acrescenta-se que o espírito é livre na prisão do corpo. E o poema encerra-se com estes versos:
"Mas livre, bem livre,
é mesmo estar morto".
Depois de uma série de poemas onde o tom sombrio da vida domina, a paixão amorosa reaparece sob a forma delicada de um verso tomado de empréstimo a um soneto de Camões: "A grande dor das cousas que passaram", também título de belo e comovente soneto de "Farewell". Ao rever as fotos da amada, ao mesmo tempo em que lê o soneto do clássico renascentista, descobre que, na ópera da vida, o libreto vai para um lado e a música em direção oposta. No desconcerto da velhice, descobre as sutis maquinações da alquimia amorosa. "A grande dor das cousas que passaram" transmuta-se em "finíssimo prazer" para aquele que consegue reflorir, pelo amor redivivo e pela memória-imagem, "os beijos e amavios que se amavam":
"Ó bendito passado que era /atroz, e gozoso hoje terno se apresenta
e faz vibrar de novo a minha /voz". A paixão amorosa. Verdadeira e única "Perturbação": "Não pode a fera comigo/ quando estou, quando estou apaixonado,/ mas me derrota a formiga/ se é que estou apaixonado". Não há como sobreviver sem a paixão amorosa; a ausência dela é a morte; por isso ela pode se apresentar no poema "Aparição Amorosa" sob a forma de um "doce fantasma" cuja transparência roça-lhe a pele. O poeta constata ao final, numa série de versos contraditórios que ecoam uns aos outros, explicitando seu atual sentir-amar-lembrar:
"Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola".
A paixão amorosa pode estar ainda nas descrições ternas e suaves das moças-manequins, ou dos manequins-moças de "A Loja Feminina", onde o poeta se dissolve "nesse enigma de formas permutantes", e está também nos bibelôs de Saxe e Delft, que são contemplados em "Os Vasos Serenos". Está, e de forma brilhante, no denso poema "Os 27 Filmes de Greta Garbo", onde imagem da atriz na tela e corpo do poeta na platéia se confundem, diz o verso, para que se realize "a unidade na miragem", espelho e destino:
"Não julgo seus adultérios /burgueses nem me revolta sua morte /espatifada contra a árvore ou sob as rodas da locomotiva.
Sou seu espelho, seu destino".
Além de ser o poeta da paixão amorosa, Drummond é também fiel amigo dos amigos. É impossível não destacar, nesta leitura breve de "Farewell", o contraditório e sentido poema "A Um Ausente" (possivelmente dedicado ao amigo e companheiro de geração Pedro Nava). O prematuramente ausente rompeu um trato: foi-se sem se despedir:
"Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que /rompeste e sem se despedires foste /embora".

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