São Paulo, domingo, 9 de junho de 1996
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As marcas de Deus na América

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que seria um amálgama puro da Religião Americana? Num livro com este título ("The American Religion", 1993), defendi a hipótese de que duas das mais admiráveis versões dessa fé seriam, inicialmente, aquela deixada inconclusa por Joseph Smith por ocasião de sua morte, em 1844, e depois a elaborada pelo batista Edgar Young Mullins, na virada do século.
A crença de Smith transmutou-se nas mãos da Igreja Mórmon, até chegar a seus atuais padrões de acomodação com a sociedade americana. Quanto aos Batistas Moderados do Sul, em luta contra os chefões fundamentalistas texanos, perseveram na tentativa de resgatar o que Mullins chamava de "competência da alma", o dom que nos vem de ter caminhado "a sós com Jesus".
Seja o que nos espera daqui para frente, essas duas modalidades tão americanas da crença devem resistir. Ambas são construções originais e híbridas, nas quais impulsos cristãos tradicionais se misturam com elementos gnósticos, entusiásticos e de um orfismo americano. Mas teremos, de fato, algum dia (adaptando a fórmula poética de W. Stevens), uma "religião do nosso clima"?
Nenhum outro país do Ocidente é páreo para nossa obsessão com a religião. A vasta maioria dos americanos acredita nalguma versão de Deus; e quase todos acreditam mesmo que Deus os ama, de modo pessoal, individual. Muito poucos são de opinião que a morte é o fim de tudo, e talvez não haja outra nação em que a morte tenha sido rejeitada com a mesma intensidade.
A morte, na literatura, é a mãe da beleza; mas a morte, na vida, é o pai da religião. Para os que discordarem dessa frase, sugiro a seguinte pergunta: se a medicina, algum dia, nos concedesse a imortalidade (pelo menos para os que pudessem pagar por ela), você, é claro, continuaria religioso, mas o que dizer do seu próximo?
Quando as pessoas se aterrorizam a si mesmas a ponto de acatar a fé, como é o caso com milhões de americanos, o que pode se pode afirmar sobre o terror?
E por que produzimos tão poucas obras-primas da literatura religiosa? A poesia, a narrativa e o teatro devocionais, da qualidade estética e profundeza espiritual que for, praticamente inexistem entre nós. O fundamentalismo, como se sabe, é de natureza energicamente antiintelectual; e o triste fato é que a religião americana também. O temor e a falta de consciência podem gerar paródias da religião, mas que valor pode haver numa suposta crença, de caráter essencialmente político?
Se existe, como penso, uma Religião Americana, então deve haver alguma coisa particularmente diferente sobre o Deus americano. No curso da história ocidental, as concepções de Deus já variaram muito, não apenas entre judaísmo, cristianismo e Islã, mas dentro de cada uma dessas religiões.
O Deus à imagem do homem, no Javista, o primeiro grande autor hebraico, tem pouco em comum com o Deus da Torá, editada no tempo de Ezra. Os católicos romanos, de sua parte, apreendem um Deus que tem pouco em comum com o sentido do divino em Calvino. E este senso, por sua vez, trazido aos Estados Unidos pelos puritanos, não tem quase nada em comum com as versões de Deus hoje difundidas no autoproclamado protestantismo.
O Deus da Religião Americana é um Deus experiencial, tão radicalmente dentro de cada um a ponto de assumir virtual identidade com o que há de mais autêntico (mais antigo e melhor) em nosso eu. Muito do primeiro Emerson fica próximo a essa visão: "É por ti mesmo, sem embaixador, que Deus fala contigo (...) É Deus em ti que responde ao Deus de fora, ou afirma suas próprias palavras nos lábios trêmulos de um outro".
Reconhecimentos dessa ordem já se tornaram lugar-comum para nossa espécie de espiritualidade e provocaram também muitas críticas. Não se trata de auto-adoração, ou uma adoração do "self": é um contato com o Deus dentro de si. Não conhecer esse Deus é estar adormecido na vida, naquela vida exterior em que a América do Norte perpetuamente dorme.
O gnosticismo e o orfismo podem, então, ser analogias inadequadas para a Religião Americana, mas não é fácil encontrar outra melhor. O americano descobre falhas na natureza, no tempo e na história, mas não em Deus, ou em si mesmo. Isto não é inteiramente de se lamentar, já que nos mantém como república esperançosa, pelo menos no reino da teoria.
A Religião Americana, neste seu aspecto gnóstico, exibe muitos pontos de contato com um gênero peculiar de fábula romanesca, que inclui desde "A Letra Escarlate", de Hawthorne, até "O Pregão do Lote 49", de Pynchon. O indivíduo gnóstico americano lança-se aí numa busca do Jesus da América, uma busca necessariamente internalizada.
Espíritos heróicos, como Joseph Smith e Mullins (teólogo de todos os verdadeiros batistas) associaram a ressurreição de Jesus à ressurreição do corpo espiritual da humanidade inteira e à América. Ao fazê-lo, estavam se incorporando a uma longa tradição, que não chega nunca a um verdadeiro clímax, nem mesmo no calvinismo muito alterado do presidente Woodrow Wilson, quando dizia que "os Estados Unidos têm o privilégio infinito de cumprir seu destino, e salvar o mundo".
Mas o gnosticismo antigo foi uma religião, ou quase-religião de elite, e o que é surpreendente nesta gnose americana é que se trata de um fenômeno de massa. Dezenas de milhões de americanos cultivam uma idéia obsessiva de liberdade espiritual, que viola os próprios fundamentos do cristianismo histórico, mas não são capazes de imaginar como estão longe do que, em outra época, era considerada a doutrina cristã.
A ironia maior por trás disto tudo é que a Religião Americana, que não é nada senão uma forma de conhecimento, não se conhece a si mesma. Talvez isto seja uma ironia americana geral e permanente, que teria sido muito apreciada por Nietzsche; e talvez sejamos nós os únicos a constituírem uma nação de conhecedores incapazes de autoconhecimento. Nosso épico nacional e melhor poema é a "Canção de Mim Mesmo", de Walt Whitman, em que o "eu mesmo" vem se revelar inconhecível.
A Religião Americana não é nem a "crença" cristã, nem a "confiança" judaica, mas um conhecimento; e como tal horrorizou a consciência protestante de D.H. Lawrence, a quem isto parecia obsceno, em representantes gnósticos americanos, como Poe e Melville. Mas nosso sentido de ter chegado tarde na cultura, na história e na religião só faz aumentar o apetite de conhecimento, e não de confiança ou crença. E o caráter de urgência desse nosso impulso nacional faz do protestantismo europeu algo de inautêntico em nossa cultura supostamente protestante.
O êxtase órfico americano jamais foi dionisíaco, jamais foi uma liberdade para se misturar aos outros. Nosso êxtase é solitário, mesmo quando requer a presença dos outros, como uma platéia para a glória do eu. E nosso pai, Walt Whitman, a despeito de suas autodescrições e das insistências dogmáticas de estudiosos gays contemporâneos, não parece ter abraçado ninguém além de si.
Há mesmo algo de humanamente frio sobre a religião do nosso clima. Nossos frenesis sagrados são dirigidos a nós mesmos, ou ao Jesus da ressurreição.
A Religião Americana só toma a cruz como emblema de Deus que se eleva, não do homem crucificado (isto quando toma, o que não é o caso dos mórmons). Os pentecostais, entre outros tantos sectários, brancos e negros, sofrem a experiência de uma violência sagrada, quando o Espírito desce; mas é uma violência que logo partilha de outros elementos da violência secular americana, tão presente no campo como na cidade.
A Religião Americana, propriamente dita, não é uma forma de violência; mas a confusão é uma marca das duas e com certeza o conhecimento, aqui, é na maior parte das vezes um saber violento.
Dificilmente uma religião do eu poderia mesmo ser uma religião da paz, já que a identidade americana tende a buscar sua autodefinição numa guerra contra a alteridade. Seu saber lhe diz que você está para além da natureza, porque é você que a precede, e seus atos naturais, portanto, não podem jamais maculá-lo. Não é de espantar, assim, que a salvação, uma vez conquistada, é irrevogável para o religioso americano, indiferentemente ao que venha a fazer.
Nossa cultura, alta e baixa, é exportada mundo afora e cada vez mais exportamos nossa religião também. Se Woodrow Wilson estava certo, então, e estamos destinados, como ele dizia, a "encarnar um espírito entre as nações do mundo", o século 21 só pode marcar um retorno geral às guerras da religião.

Tradução de Arthur Nestrovski.

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