São Paulo, domingo, 9 de junho de 1996
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O papel do desentendimento na arena política

JACQUES RANCIÈRE

A transformação da cena democrática em cena humanitária pode ser ilustrada pela impossibilidade de um modo de enunciação. No início do movimento de maio de 1968 na França, os manifestantes haviam definido uma forma de subjetivação resumida numa frase: "somos todos judeus alemães". Essa frase ilustra bem o modo heterológico da subjetivação política: tomando ao pé da letra a frase estigmatizantes do adversário, preocupado em despistar o intruso sobre o palco em que se contavam as classes e seus partidos, ela a invertia para convertê-la numa subjetivação aberta dos incontados, um nome sem confusão possível com qualquer grupo social real, com qualquer cômputo de identidade.
É evidente que uma frase desse tipo seria hoje impronunciável, por duas razões. A primeira é que não é exata. Os que a pronunciavam não eram alemães e não eram, na sua maioria, judeus. Ora, tanto os partidários do progresso como os da ordem admitiram desde então que só são legítimas as reivindicações de grupos reais que tomam pessoalmente a palavra para dizerem eles mesmos sua própria identidade.
Ninguém doravante tem o direito de se dizer proletário, negro, judeu ou mulher se não o for, se não tiver essa qualidade nativa e sua experiência social. A única exceção a essa regra de autenticidade, é claro, é a "humanidade" cuja autenticidade consiste em ser sem palavras e cujos direitos estão nas mãos da polícia da comunidade internacional. E aí aparece a segunda razão: a frase é doravante impronunciável porque é evidentemente indecente. A identidade "judeu alemão" hoje significa imediatamente a identidade da vítima do crime contra a humanidade, que ninguém poderia reivindicar sem profanação. Ela não é mais um nome disponível para a subjetivação política, mas o nome da vítima absoluta que suspende essa subjetivação.
O sujeito do desentendimento tornou-se o nome do interdito. A era humanitária é aquela em que a idéia da vítima absoluta proíbe os jogos polêmicos da subjetivação do dano. O episódio que se chamou "nova filosofia" resume-se inteiramente nessa prescrição: o pensamento do massacre é o que marca de indignidade o pensamento e proíbe a política.
O pensamento do irresgatável vem então servir de duplo ao realismo consensual: o litígio político é impossível por duas razões: porque suas violências são um entrave para o acordo racional das partes; e porque as facécias de suas encarnações polêmicas ultrajam as vítimas do dano absoluto. A política deve então ceder diante do massacre, o pensamento inclinar-se diante do impensável.
Só que a duplicação da lógica consensual de submissão à pura contagem das partes pela lógica ética/humanitária de submissão ao impensável dos genocídios assume o aspecto de um "duplo vínculo". A distribuição dos papéis, é verdade, pode permitir que as duas lógicas se exerçam separadamente.
Ainda assim é preciso que nenhum provocador atinja o ponto em que se encontram, o ponto que designam com evidência ao mesmo tempo em que se esforçam para não vê-lo. Esse ponto é o da pensabilidade do crime contra a humanidade como integralidade do extermínio. É a esse ponto que chega a provocação negacionista. Esta devolve sua lógica aos gestores do possível e aos pensadores do impensável, manejando o duplo argumento da impossibilidade de um cálculo exaustivo do extermínio e da impensabilidade de seu pensamento, afirmando a impossibilidade de presentificar a vítima do crime contra a humanidade e de dar uma razão suficiente pela qual o carrasco o teria perpetrado.
Tal é na verdade o duplo motor da argumentação negacionista, para negar a realidade do extermínio dos judeus nos campos nazistas. De um lado, ela lança mão dos clássicos paradoxos sofistas da enumeração interminável e da divisão ao infinito. Já em 1950, Paul Rassinier havia fixado seu conjunto de argumentos sob a forma de uma série de pergunta cujas respostas deixavam aparecer a cada vez que, mesmo que todos os elementos do processo fossem reconhecidamente certos, seu encadeamento não podia nunca ser inteiramente refeito, e menos ainda a sua ligação às consequências de um projeto de pensamento integralmente programado e imanente a cada uma de suas sequências.
Realmente, dizia ele, houve declarações nazistas que pregavam o extermínio de todos os judeus. Mas declarações nunca mataram ninguém por si sós. Realmente, houve planos de câmaras de gás. Mas um plano de câmara de gás e uma câmara de gás em funcionamento são duas coisas tão diferentes quanto cem táleres possíveis e cem táleres reais. Realmente, houve câmaras de gás instaladas de fato num certo número de campos. Mas uma câmara de gás é apenas uma fábrica de gás com que se pode fazer todas as espécies de coisas diversas e acerca da qual não há prova de que tivesse a função específica do extermínio em massa.
Realmente ainda, havia, em todos os campos, seleções regulares ao cabo das quais desapareciam prisioneiros que nunca mais foram encontrados. Mas há mil maneiras de matar pessoas ou simplesmente deixá-las morrer e as que desapareceram nunca nos dirão como desapareceram.
Realmente enfim, houve nos campos prisioneiros mortos de fato pelo gás. Mas nada prova que tenham sido vítimas de um sistemático plano de conjunto e não de simples torturadores.
É preciso determo-nos um instante o duplo motor dessa argumentação: faltam documentos, dizia Rassinier em 1950, para estabelecer a conexão de todos esses fatos a um único acontecimento. Mas também acrescentava ele, é muito duvidoso que sejam um dia encontrados. Ora, desde então, foram encontrados documentos em abundância suficiente. Nem por isso a provocação revisionista cedeu. Ao contrário, soube encontrar novos adeptos ou novas tolerâncias.
Quanto mais seus argumentos se mostraram inconsistentes no plano dos fatos, mais sua verdadeira força se afirmou. Essa força provém de ter tocado o próprio regime da crença segunda a qual uma série de fatos é constatada como um acontecimento singular, e um acontecimento subsumido sob a categoria do possível.
Provém de ter tocado no ponto em que duas possibilidades devem ser ajustadas uma à outra: a possibilidade material do crime como encadeamento total de suas sequências, e sua possibilidade intelectual segundo sua qualificação de crime absoluto contra a humanidade.
A provocação negacionista não se sustenta pelas provas que opõe ao acúmulo das provas adversas. Ela se sustenta porque traz cada uma das lógicas que ali se enfrentam a um ponto crítico em que a impossibilidade se encontra comprovada sob tal ou qual de suas figuras: falta na cadeia, ou impossibilidade de pensar o encadeamento. Ela obriga então essas lógicas a executar uma corrida em que o possível é sempre alcançado pelo impossível, e a verificação do acontecimento pelo pensamento de seu impensável.
Tradução de Ângela Leite Lopes.

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