São Paulo, domingo, 9 de junho de 1996
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Um vanguardista clássico

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

György Somlyó, nascido em 1920, é hoje o melhor poeta húngaro. Como isso diz respeito a um pequeno país da Europa centro-oriental, cujo tamanho e população equivalem aproximadamente aos de Portugal e onde, além do mais, fala-se uma língua difícil, quase desconhecida no exterior, o juízo acima corre o risco de beirar a irrelevância. A situação no entanto é bem diversa, pois a Hungria e seus vizinhos, particularmente a ex-Tchecoslováquia e a Polônia, produziram nos últimos cem anos uma poesia que, seja em quantidade, seja em qualidade, não deve nada àquela que se escreveu nas paragens mais conhecidas do Velho Mundo. Esta é, felizmente, uma constatação cada vez mais familiar aos ouvidos ocidentais.
Além de poeta, Somlyó é também romancista, crítico literário (o principal em seu país a aplicar ao estudo da poesia as lições de Jakobson, Roland Barthes, Paul Valéry etc.) e um dos dois ou três mais importantes tradutores de poesia (lírica e dramática) numa língua em que, ao contrário da nossa, os poetas sempre consideraram uma obrigação e um prazer a naturalização de um número crescente de obras estrangeiras.
Nesta última condição, ele prestou serviços inestimáveis à América hispânica e ao português, pois, não apenas traduziu extensamente do francês, sua segunda língua, como apresentou aos seus compatriotas nomes como Pablo Neruda (seu amigo pessoal), Vallejo, Octavio Paz (sua é a segunda tradução mundial de "Piedra de Sol") e Fernando Pessoa (1971: primeira antologia húngara). Ele recriou também poetas que vão de Racine ("Fedra") a Drummond, Vinicius de Morais e o autor anônimo do "Cântico dos Cânticos".
Embora ele tenha a idade de João Cabral, sua poesia, por um lado, assemelha-se mais ao experimentalismo da geração imediatamente posterior -H.M. Enzensberger na Alemanha, Edoardo Sanguinetti na Itália ou os poetas concretos no Brasil. Por outro, seus poemas possuem diferenças relevantes, características da terra e da região em que foram escritos, sobretudo o quase insuportável peso de uma história geralmente devastadora.
Eles tampouco poderiam deixar de evidenciar a trajetória pessoal do poeta durante a guerra e sob o stalinismo -trajetória que envolve, por exemplo, uma polêmica amarga com seu conterrâneo Georg Lukács. E, mesmo na literatura húngara, Somlyó ocupa uma posição singular, pois é um vanguardista clássico, algo que pode parecer um paradoxo -e é. Mas não gratuito.
Ele é paradoxal à medida que suas duas coleções mais marcantes são, respectivamente, um conjunto, por assim dizer, "tradicional" de sonetos e um outro, mais "modernista", de poemas (sobretudo, mas não só) em prosa (chamados "Fábulas Contra a Fábula"). Pode-se, aliás, argumentar que o soneto até que é clássico, mas o poema em prosa, que remonta a meados do século passado, não é tão vanguardista assim.
Só que no país em questão, o caso, ambos os casos são distintos. Não só é recente a difusão do soneto, como (devido ao apego até mesmo dos poetas modernistas locais às formas fechadas) são igualmente novos os versos livres e/ou "prosaicos". E o tratamento que Somlyó dá a ambos torna-os geralmente estranhos. Assim, nas suas mãos, o soneto e o poema em prosa convertem-se tanto na invenção de uma tradição alternativa -ocidentalizante, mediterrânea quanto na retomada de uma vertente esquecida da vanguarda das primeiras décadas do século. Seu "vanguardismo clássico" revela, portanto, um sentido não menos paradoxal, mas mais profundo, ou seja: ele decorre de um afã modernizante que é menos iconoclasta que recuperador, redimindo, para parafrasear Adorno, as possibilidades deixadas de lado pela história da poesia húngara e, talvez, por várias outras.
Tradutor de tantas línguas, ele não é de todo desconhecido fora das fronteiras de sua própria e foi bem apresentado, particularmente em francês, por seus amigos Eugène Guillevic ("Contrefables", Ed. Gallimard) e Michel Déguy, de cuja revista, "Po&sie", ele é um dos conselheiros editoriais. Para a nossa língua ele já foi vertido pela portuguesa Natália Correia.

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