São Paulo, domingo, 9 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A miragem permanente da literatura

O ensaísta Luiz Costa Lima resgata o conceito de mimesis

MANUEL DA COSTA PINTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Vida e Mimesis", de Luiz Costa Lima, é uma genealogia do conceito de mimesis -termo normalmente traduzido por "imitação" e que é empregado para se referir à interpretação da realidade contida nas representações literárias.
Costa Lima mostra que as sucessivas mutações da noção de mimesis denotam os diferentes modos como a cultura ocidental regula as relações entre verdade e linguagem, desvelando um movimento mais amplo: o "controle do imaginário".
A idéia do controle do imaginário vem sendo desenvolvida por Costa Lima em diversas obras (a última fora "Limites da Voz", de 1993, que acaba de ser lançada nos EUA pela Stanford University Press) e descreve um processo pelo qual a literatura foi constituída, enquanto discurso autônomo, como um espaço circunscrito e limitado do imaginário social e individual, de modo a subordinar o ficcional -e sua criticidade implícita- aos discursos dominantes da religião, da filosofia ou da ciência.
Como Costa Lima havia sugerido em "Mimesis e Modernidade" (1980), a noção de mimesis continha, já na Antiguidade, uma dimensão problemática: de um lado, a "incomensurabilidade entre coisa e palavra" postulada pelos sofistas, que destacavam o papel da linguagem e de seu tecido sensível como gerador de realidade; de outro, uma visão substancialista (presente em Platão e Aristóteles), que pressupunha uma ordem que conferisse aos objetos uma identidade pré-existente a sua expressão verbal. "Vida e Mimesis" desenvolve esse argumento e localiza na dupla acepção grega de logos (razão "e" palavra) as derivações posteriores da mimesis.
Originalmente associada à dança e à música, a mimesis é um fenômeno de expressão: "Ela antes põe do que expõe; é apresentação e não, basicamente, representação".
Razão sem palavra, o primeiro significado de mimesis vai de encontro, portanto, ao pensamento trágico de Górgias, ao mundo "ilusório", ditirâmbico, dos sofistas. Sua contraface seria o anátema lançado contra a mimesis e sobre todo o mundo sensível pela idealidade platônica, que "disciplina" o uso da palavra.
"Vida e Mimesis", porém, ultrapassa essa oposição nietzschiana entre os sofistas e o platonismo, encontrando em Aristóteles o liame entre a Antiguidade e as poéticas do Renascimento.
Em Aristóteles, a imagem seria a forma de enunciação da "phantasía", denotando um "eclipse temporário" do pensamento. Entretanto, longe de provocar uma condenação em si do imaginário, a função catártica da imagem impunha ao filósofo a tarefa de julgar se aquilo que era verossímil para o cidadão era ao mesmo tempo "necessário", "essencial", do ponto de vista da razão legisladora. Na "Poética" de Aristóteles, diz Costa Lima, "a razão vigia à distância".
Sendo o modelo aristotélico construído sob o ponto de vista da polis, a palavra final do filósofo carregava um inequívoco sentido ético. Transposta para o mundo renascentista, esta ética se tornaria rigidamente normativa. O imperativo do poeta era "conduzir os homens a alguma idéia virtuosa" -como afirmava Savonarola no século 15. No Renascimento, diz Costa Lima, a mimesis se tranforma na "imitatio", na "absolutização do verossímil", em que a poesia deveria disfarçar sua origem espúria (o imaginário) por meio de um "discurso ornado".
Costa Lima examina então a poética barroca em sua ambiência espanhola (Baltasar Gracián) e italiana (Emanuele Tesauro), mostrando como seus "silogismos retóricos" (na formulação do teórico João Adolfo Hansen) buscam recuperar, por meio de uma estética tão normativa quanto a do Renascimento, uma unidade retórica ameaçada pela mentalidade científica e contra a qual reagia a Contra-Reforma -reforçando o caráter estetizante e o espaço não-ficcional reservado à literatura.
Esse embate, porém, já apontava para a vitória final do pensamento científico. Extinta a luz crepuscular do universo teológico, à razão científica caberá compreender os fenômenos e, à razão prática, estabelecer os imperativos das ações humanas -conforme a formulação de Kant.
Em ambos os casos, o sentido está para além do sujeito e, como o literário se restringe à ação deste, "o desaparecimento da mimesis (que colocava o problema da verdade contida na linguagem) é o correlato da identificação do artista com o sujeito por excelência criador" -como ocorrerá com os autores do primeiro romantismo (Schiller, Novalis), cuja "religião do eu" apenas aprofunda a incapacidade do imaginário de legislar sobre uma realidade em que pontificam os ditames da filosofia.
Ao discutir a percepção contemporânea da mimesis em autores como Auerbach e Wolfgang Iser, Costa Lima recoloca portanto aquela que é sua principal preocupação teórica: a deformação do ficcional no Ocidente como forma de anestesiar seu efeito problematizador. Como impulso básico para "experimentar-se como outro", a mimesis teria encontrado um renascimento positivo na psicanálise, na antropologia e na historiografia.
Entretanto, sendo a arte o campo de mais nítida manifestação da mimesis, Costa Lima não deixa de notar que a crítica literária atual não consegue ultrapassar o mero textualismo -uma herança romântica que, tendo no bolso do colete a defesa do fato poético puro, da forma contra o conteúdo, "confunde a presença da sociedade na obra com o meramente externo", eliminado inda uma vez tensão entre o ficcional e o real.
A contrapartida seria o emprego da noção de mimesis para criar instâncias extratextuais que contenham o ficcional (caso das abordagens sociológicas da arte, que estabilizam o inesperado, o Outro apresentado pela ficção).
Para Costa Lima, ao contrário, é por conter exatamente os dois termos antitéticos da semelhança e da diferença, da identidade e da alteridade, que a mimesis pode ser um potencializador do literário, em que a apropriação do real pelo imaginário anima sempre o seu próprio movimento: "Em vez de coincidência entre exploração da alteridade e recondução ao um do conhecimento, a mimesis supõe a constante tensão entre o fascínio que a move e a promessa de um saber que não a exaure. (...) A obra da mimesis desconhece uma camada semântica derradeira, idealmente passível de imobilizá-la em sentido. Antes que espelho, do ponto de vista do sentido, a mimesis é miragem".
Ao final de "Vida e Mimesis", o que se observa é a criação de uma nova poética, em que o resgate do conceito de mimesis permite redimensionar -e talvez resgatar- o lugar do literário e do imaginário na cultura ocidental.

Texto Anterior: Um vanguardista clássico
Próximo Texto: As vantagens da discordância
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.