São Paulo, domingo, 9 de junho de 1996
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As vantagens da discordância

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pouco tempo atrás pedi a um amigo norte-americano negro para me ajudar a conseguir um encontro com um certo líder da comunidade afro-americana. O amigo, que desaprovava meu interesse por esta figura pública, me apostrofou assim: "Vocês brancos sempre acabam prestando atenção aos holofotes..."
Nem consegui escutar suas razões. Fiquei pasmo. Era a primeira vez que a palavra de um outro me incluía em uma designação racial: "Vocês brancos...".
A primeira reação, indignada, foi aquela que europeus e sul-americanos parecem preferir. Não era isso uma prova a mais da iminente catástrofe do tecido social norte-americano? Como pode continuar andando uma nação dividida em um número exponencialmente crescente de grupos e subgrupos, cada um perseguindo seus interesses particulares?
Esta paixão pelas pequenas diferenças -étnicas, sexuais, comportamentais- seria testemunha de algum valor simbólico e universal perdido e -no mínimo- o sinal precursor da desintegração nacional. E por aí vão sátiras e pedradas contra o multiculturalismo e o politicamente correto etc. Conheço quase todas e as acho engraçadas. Mas elas me deixam um gosto amargo; esta de minimizar as divisões pelo sexo e a cor da pele com uma alisada no cabelo, tipo "Afinal, caro Bongo e cara Fulana, somos todos brasileiros correndo atrás da mesma bola (uma vez a cada quatro anos)" tem cheiro de paternalismo interesseiro: "Esqueçam suas diferenças que incomodam meus negócios!!"
Na França, por exemplo, há brancos e negros. O racismo ambiente prefere discriminar os norte-africanos das ex-colônias mediterrâneas (que não são negros), mas os negros (franceses das Antilhas ou imigrantes) também são vítimas de formas explícitas ou larvadas de racismo. Mesmo assim, não imagino ninguém, negro ou branco, se endereçando a um amigo (ou mesmo a um inimigo) de cor diferente como membro de uma classe: "Vocês negros", ou "Vocês brancos". Afinal -dirá um francês ilustrado- é verdade que não somos todos franceses, mas somos todos homens, não é?
E no Brasil a frase de meu amigo negro americano também soaria estranha. Aqui, dir-se-á imediatamente, salvo para os colonos do século 19 em diante que chegaram e ficaram em família, já não é fácil decidir quem é negro e quem é branco. Ao contrário do que aconteceu na América do Norte, o colonizador brasileiro originário era solteiro, e buscava mulher para povoar a nova terra. Deu no que Gilberto Freire chamou a miscigenação.
A conclusão a qual se chega é que o Brasil, por exemplo, seria menos racista do que os Estados Unidos.
É uma conclusão no mínimo apressada. O indulgente comércio carnal do colonizador brasileiro com índias e negras não é documento, se não pelo caminho justamente do paternalismo já dito: "Como é que seria racista se gosto tanto de aparecer na cozinha de vez em quando?" Por mulatos que sejam, os herdeiros do colonizador não são menos cuidadosos dos privilégios da "brancura" de suas origens. Sobra um paradoxo: embora a cor da pele no Brasil não seja indiferente no comércio social, no entanto fica difícil dividir a população em grupos étnicos claramente definidos.
Será que isso é alguma vantagem?
Tomemos o exemplo, recente, da tentativa de aplicar no Brasil os princípios da "affirmative action" norte-americana. Pela iniciativa de Nixon (e sim, dos republicanos!), e na continuação do movimento dos direitos civis da segunda metade dos anos 60, os Estados Unidos decidiram tomar medidas não só negativas contra a discriminação, mas também positivas em favor dos desfavorecidos.
Tratava-se de reconhecer desvantagens sociais grandes e enraizadas demais para serem corrigidas pelo jogo das oportunidades oferecidas por uma sociedade aberta e, portanto, de garantir temporaneamente privilégios específicos (no mercado do trabalho e na formação escolar) a minorias historicamente desfavorecidas. A proposta tardia de oferecer aos negros brasileiros medidas comparáveis encontra comumente, nas conversas de salão, a objeção que mencionamos: mas quem são aqui os negros e quem os brancos?
Ora, se esta distinção parece difícil no Brasil, o problema talvez não seja tanto étnico ou racial. Nos EUA, tampouco, ser negro é uma questão de cor de pele: de uma certa forma, é negro quem se declara tal. A dificuldade brasileira com a distinção talvez seja então muito mais cultural do que genética. Como se a história da miscigenação se tornasse pretexto (ufanista) para manter diferenças e discriminações que não queremos reconhecer.
Muito bem, dir-se-á, mas porque dividir assim o conjunto da nação? A resposta é simples: para tornar possível uma democracia, precisa reconhecer as diferenças que a compõe, até nomeá-las.
Isso não implica um grau particular de separação social e de racismo. E talvez permita exatamente o contrário, ou seja, talvez o racismo possa ser melhor combatido quando as diferenças, a separação em grupos, podem ser articuladas.
Por exemplo, achei a apóstrofe de meu amigo afro-americano agressiva. Fiquei chocado, mas -pensando bem- o que me indignou foi sua verdade e não sua injustiça. É isso mesmo: apesar de minhas idéias esclarecidas, somos mesmo brancos e negros. Porque esqueceria que meu amigo, levantando a mão em uma rua de Manhattan, tem bem menos chances do que eu de ver um táxi parar? Porque esconderíamos os mil detalhes da vida cotidiana que nos reservam vivências diferentes? Para continuarmos amigos, não será, ao contrário, necessário evitar falsos pudores e ilusões de igualdade?
A capacidade de reconhecer e articular as diferenças não constitui a fraqueza, mas a força de uma democracia.
Post Scriptum
É possível continuar pensando que a paixão nominalista norte-americana divida a sociedade em pequenos grupos sem causa e coesão comum. E muitos de fato parecem se preocupar com a idéia de um futuro feito da agitação sem fim de interesses de pequenos ou grandes grupos. Será, perguntam, que uma sociedade, uma nação, pode resistir a tanto particularismo? Quem assim se preocupa, pode -no que concerne aos Estados Unidos- ficar sossegado.
Dia 27 de maio foi Memorial Day, dia para lembrar os mortos e honras os veteranos das guerras todas que o país engajou, ganhou ou perdeu.
Visitei nesta ocasião o monumento aos mortos da guerra do Vietnã da região de Nova York, em Water Street. É um paralelepípedo de tijolos de vidro sobre os quais são gravados fragmentos de cartas de soldados, respostas de familiares e recortes de notícias. Apenas 20 anos após o fim de uma guerra que dividiu a nação deixando aparentemente uma ferida aberta na história americana, são comemorados juntos, no monumento, os soldados que morreram no Sudeste asiático e os estudantes da Universidade de Kent, mortos pela Guarda Nacional durante uma manifestação contra a guerra.
Afinal, como me disse um veterano que passava a noite perto do monumento, todos morreram pelas mesmas idéias, só não concordavam sobre a maneira de realizá-las.
Quem diz que a nação americana não sabe lidar com as diferenças que reconhece?

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