São Paulo, segunda-feira, 10 de junho de 1996
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Pegando jacaré

JOÃO SAYAD

Não se pode ser contra a globalização, o mercado ou as promessas do futuro. Nem com muitas das nossas heranças do passado. São coisas da vida, inseparáveis e inexoráveis. Não existe praia linda, cercada de florestas tropicais próximas ao mar, sem borrachudos. Nem dias lindos de sol em São Paulo, sem inversão térmica e poluição. Nem casamento sem sogra ou paixão sem sofrimento.
O que se discute, porque incomoda, é a visão que muitos economistas têm das coisas da história, as palavras que usam, o tom de novidade e a carga de ideologia. Paulo Nogueira Batista Júnior, desta mesma coluna, acha que o problema é apenas dos brasileiros, que discutem mal, estudam mal e analisam mal.
Discordo. O defeito não é apenas brasileiro, é transnacional.
O Fórum de Davos, por exemplo, que já foi entusiasta do México e da Rússia, agora classifica os países em termos de competitividade. Coloca Cingapura em primeiro lugar, Hong Kong em segundo e o Brasil entre os últimos. O professor Sachs corrige Davos e promove o Japão para o quarto lugar.
Onde será que estão classificadas as British Virgin Islands ou as Bahamas? O que é competitividade? Por que o Japão é considerado competitivo?
Competitividade é definida pelo Fórum como a habilidade de um país criar valor adicionado e atingir crescimento econômico auto-sustentado. É uma espécie de coeficiente de inteligência que sabemos medir, mas não sabemos o que é.
Além disso, a globalização é entendida como a vitória do mercado. Mas não se define corretamente o mercado.
Na realidade, o que se pode observar é o crescimento dos investimentos das grandes transnacionais em diversos países do mundo e o crescimento muito rápido dos mercados financeiros.
Com a informática e a comunicação, as empresas conseguiram se descentralizar, se tornar mais leves, com menor número de níveis hierárquicos.
Da mesma forma, permitiu a terceirização e que muitas atividades sejam entregues a outras empresas, que não são contratadas no mercado no sentido tradicional do mercado de batatas ou de soja, mas contratadas em regimes de "parcerias" ou "cooperação estratégica", um novo tipo de relação de compra e venda, intermediária entre o mercado definido estritamente e a relação administrativa que prevalece dentro de uma empresa, entre patrão e empregado. Tem funcionado muito bem.
Mas chamar isto de mercado perde a essência da novidade, que aliás tem origem japonesa no relacionamento das montadoras com as fábricas de autopeças, ou mesmo nos antigos "zaibatsu".
O mesmo raciocínio prevalece para o desenvolvimento internacional do mercado financeiro. Aconteceu por causa do déficit público e da política monetária norte-americana dos dez últimos anos. Não há por que reclamar. Esta nova situação financeira internacional permitiu aos países da América Latina, sufocados pela crise da dívida externa e dos bancos, à moda antiga, iniciar um novo período de estabilização, como no caso do Plano Real.
Mas é preciso cuidado: o P/L (relação entre preço e lucro) da Bolsa norte-americana aumentou de 15 para 30 recentemente. A japonesa tem P/Ls maiores ainda. Será que o "novo mercado financeiro" funciona bem, como querem os economistas? E a crise do México, como pode ser explicada? Que mercado inteligente é este que acreditou que o acúmulo persistente de déficit de transações correntes não traria problemas porque o déficit público mexicano estava sob controle?
Se há algo de novo, não sabemos nem analisamos direito o que é, porque gastamos muito tempo com o discurso triunfalista dos economistas que se encantam com o novo "achado".
A melhor política econômica para um país como o Brasil é aquela que coordena e acelera as tendências inevitáveis da economia mundial. Que se aproveita delas, como o Plano Real se aproveita, mas analisa com cuidado como aproveitar o que é bom, evitar os riscos e perigos do que parece novo, mas já criou grandes problemas no passado, como é o caso do mercado financeiro. E que protege e salva as coisas boas do passado.
No mar, quando vem uma grande onda, devemos aproveitar sua força e pegar um jacaré ou surfar, nunca enfrentá-la. A melhor política econômica deveria aproveitar a força da onda e nos levar na mesma direção.
Homens de ação e políticos precisam e têm o direito de usar a retórica ideológica. Economistas deveriam analisar e debater com cuidado o que está acontecendo. Estadistas não deveriam acreditar no próprio discurso triunfalista. Do contrário, corremos o risco de ser embrulhados pelas ondas e comer muita areia.

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