São Paulo, terça-feira, 11 de junho de 1996
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Os 'chapas negras' são patrulheiros dos anos 90

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Existem muitos tipos de homens de esquerda. Há comunas, socialistas, social-democratas, românticos. Toda uma gama de indignados com a injustiça da vida social.
O homem de esquerda odeia a desigualdade, mas também deve amar a diferença. Amar a diferença é democracia. Odiar a desigualdade é ser de esquerda. O problema é que, dentro da esquerda, existe um tipo chamado "chapa negra".
O chapa negra não precisa ser jornalista. Pode ser um político, intelectual, líder de sem-terra, padre, professor, estudante, escritor, operário.
Conheci muitos homens de esquerda e muitos chapas negras. Os homens de esquerda estão cheios de cicatrizes, de erros, de desilusões. Mas o chapa negra não muda. Só ele está certo; todos nós temos de segui-lo. Assim, ele desconfia de quem pensa diferente.
O chapa negra ama a desigualdade, apesar de condená-la de púlpito, porque, sem a desigualdade do mundo, ele não teria o que condenar. Ele celebra a igualdade sem diferença dos homens, para que sejam tão iguais que não precisem de desejos. Para ele, o indivíduo é um traidor.
O chapa negra não é um tipo ideológico; é um tipo psicológico. É óbvio que ele negue que haja "psicologia". O chapa negra não tem "mundo interior". Só exterior. O chapa negra não se explica para nós. Ele é detentor de uma verdade que ele não conta.
O problema do chapa negra é que ele se acha mais de esquerda que os outros. Ele se acha o parâmetro.
O chapa negra tem dois sentimentos básicos: inveja e rancor. O chapa negra parece progressista, mas não é. Parece a favor do povo, mas não é. O povo, claro, nem sabe que ele existe.
O chapa negra nos faz tremer de medo, porque ele se purifica com o mal do mundo. Se as coisas andarem bem, o chapa negra se inquieta. Ele paralisa as idéias, segura a imaginação, a esperança. Há chapas negras no PT, no PSDB, na igreja, em tudo.
O chapa negra se acha o proprietário exclusivo da dor. Quem ousa tratar a miséria como algo possível de ser resolvido é odiado pelo chapa.
O chapa negra precisa da miséria (dos outros) para dar sentido a sua vida. Para ele, quanto pior, melhor.
É preciso que tudo vá para o brejo para que ele possa pedir salvação. Há muitos políticos assim. É preciso que o Real se dane para que ele seja eleito, condenando-o.
Muito chapa negra pensa que fracassou na vida porque é de esquerda. Nunca lhe ocorre que ele seja de esquerda porque fracassou na vida.
O chapa negra tem algo de jesuíta, de burocrata, de censor. Ele odeia o viável, pois o viável o inviabiliza.
Ele nunca está satisfeito. Quanto mais houver evidência de fracasso, mais o chapa negra tem fé (Ernest Gellner). O místico tem a religião da transcendência. O chapa negra tem a religião da imanência (idem).
O chapa negra odeia a complexidade das coisas. Acha que é frescura de pequeno burguês. O chapa negra desconfia de tudo. O chapa negra sabe de um complô em andamento. Só que ele não diz qual é. Senão, estraga o complô. Ele conhece tantos segredos, que é quase um traidor. Ele é tão bem-informado, que é quase um agente duplo.
O problema do chapa negra é que ele não gosta de brincadeira. Está sempre olhando para trás, com medo de alguma faca ou pau. Acha que a história é uma grande conspiração contra ele.
Tudo que pinta não é bem aquilo. Tudo é um disfarce. Se um dia a revolução ganhasse, ele seria contra. Ele não se deixa enganar. E, no entanto, é essencial se deixar enganar.
Ele sabe segredos sobre nós que até nós desconhecemos. Só ele sabe os crimes que nós cometemos. Mas não nos conta. Só ele sabe quem nós somos. E nos deixa o suspense: "E se ele tiver razão?"
A única brecha de bondade que o chapa negra nos abre é que sejamos uma besta. Nossa única esperança é que, em vez de sermos canalhas, sejamos ingênuos ou burros. Essa é a única salvação que ele nos concede: sermos uns babacas, em vez de traidores.
O chapa negra é uma fotografia onde nada se revela. Nenhuma imagem aparece.
O chapa negra é um vingador. Não vingador do povo, como ele pensa; um vingador de si mesmo. O chapa negra tem um ressentimento infantil. Alguns sofreram assédio sexual na infância.
Para o chapa negra, o riso é uma forma de fraqueza. Homem não ri; ou ri contra a vontade, um riso tenso, triste. Às vezes, tenho pena do chapa negra. Ele nunca está onde está. Seu mundo é sempre além, uma utopia triste, uma utopia de guarda-chuva.
Ele é antierótico. Ele não tem nem mesmo a doce ingenuidade dos fanáticos pelo bem. Ele não se permite nem esse prazer. Ele tem uma missão: convencer-se de que tem uma missão. Como os TFPs, ele é melhor do que nós. Diante de nossa miséria, ele se cala, sacerdotal. Diante dele, todos somos culpados.
O chapa negra é contra as subjetividades. Mais que isso, ele é contra o sujeito. Só gosta de objetos. Ele é contra as opiniões. Ele acha que não é um sujeito. Ele é um fato.
Qual é o lucro de um chapa negra?
O "chapa branca", como o chapa negra chama os "outros", ao menos tem as vantagens do puxa-saco, arranja emprego, grana, favores dos poderosos que bajula. Mas o que lucra o chapa negra?
Ele tem o lucro fabuloso de trevas infinitas. Ele tem o banquete da sopa da cabeça de bode. Ele tem a delícia da dor de ser sozinho. Ele tem o lucro de se vingar da vida, condenando-a. Ele tem o lucro do despacho de encruzilhada. Ele tem o lucro do prejuízo do mundo.
O chapa negra pega; fui obrigado a ser chapa negra com os chapas negras.

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