São Paulo, quinta-feira, 13 de junho de 1996
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A feijoada da Mangueira

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Aí pelo início dos anos 70, tive uma empregada que desfilava pela Mangueira. Era aquilo que o Machado de Assis chamaria de "patusca". O marido dela integrava a bateria, tocava chocalho. Na temporada dos ensaios, ela acordava e via que o marido, dormindo, sonhava com a bateria e ficava tocando chocalho a noite inteira. O hábito fazia o monge.
A Mangueira passara dez Carnavais sem ganhar o campeonato, ganhou naquele ano. Ela me trouxe o Livro de Ouro para assinar: haveria uma feijoada brutal, para 10 mil convivas, mil para cada ano de jejum na passarela do samba.
Assinei no Livro de Ouro, mas evitei a feijoada, embora me prometessem mordomias várias. Não fazia fé numa feijoada para 10 mil bocas famintas de comida e glória.
Pensei nisso ao ler uma reclamação de autores que se queixam das tiragens pequenas de seus livros. Quando estreei, em 1958, o editor Enio Silveira ficou envergonhado, pediu desculpas por tirar apenas 5.000 exemplares do meu primeiro romance, era um estreante, mais tarde, quem sabe. Hoje, as tiragens iniciais ficam pela casa dos 3.000 exemplares.
Em compensação, há livros que estouram e temos o caso do Paulo Coelho, que eu pessoalmente considero injustiçado pela crítica, mas não pelos leitores. Ele ocupa uma faixa específica da literatura -e ocupa bem, com dignidade e competência. Não é culpa dele ter tantos leitores. Muitos outros, antes e depois dele, tentaram o mesmo segmento e quebraram a cara.
De certa forma, sem que nisso vá qualquer restrição ao gênero que cultiva e engrandece, ele repete o sucesso da Mangueira. Sua feijoada pede números colossais. Há autores que em vez de feijão servem bródios refinados, textos que fariam Joyce e Faulkner ficar envergonhados. Não podem reclamar das tiragens pequenas, embora tenham o consolo da posteridade -uma abstração que talvez nem goste de feijoada.

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