São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
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Liras românticas

CILAINE ALVES CUNHA

O romantismo, período decisivo na constituição da nossa maturidade literária -atualmente ignorado pela maioria dos estudos literários e limitado quase que a programas de vestibular-, sobrevive graças às constantes reformulações do cânone pelas histórias e antologias literárias.
Publicada pela primeira vez em 1937, "Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Romântica" articula-se em função dos múltiplos interesses de Manuel Bandeira: o do poeta que não perde tempo com autores de falsa inspiração (tão abundantes em nosso romantismo); o do professor e estudioso da literatura que, empreendendo uma pesquisa das formas estéticas, destaca os poemas que apresentam inovações temáticas ou técnicas; e o do modernista que releu o romantismo como precursor da proposta de assimilar esteticamente a cultura popular, visando formar uma "consciência criadora nacional".
Nesse sentido, se o diálogo com Silvio Romero e José Veríssimo permitiu a Bandeira incorporar poetas que, antes tomados por menores, apresentaram significativas contribuições para a formação de nosso cânone -corrigindo os exageros apologéticos da crítica do início do século-, a adesão explícita à historiografia de Ronald de Carvalho favoreceu o registro e reatualização, pelos critérios de sua época, das transformações que o gosto médio sofreu até então; o que o deixou livre não só para reproduzir as obras consagradas, mas também para difundir as menos conhecidas.
Por sua vez, Alexei Bueno, na "Introdução" a "Grandes Poemas do Romantismo Brasileiro" -alegando que não existe gosto em literatura-, noticia que não pretendeu adotar critérios "puramente históricos ou representativos", mas tão-somente obedecer a uma hipotética determinação estética e supratemporal da arte, "confirmada" pela permanência de certas composições na "alma brasileira". Coerente com este critério, Bueno seleciona poemas que -por terem se tornado provérbios ou frases feitas, seja pela sua facilidade interpretativa ou mesmo por seu ritmo melodioso- apresentam alguma garantia de aceitação pública, privilegiando, entre estes, aqueles que apelam, de forma exacerbada, ao sentimentalismo.
Assentado em critérios tão restritos, é natural que Bueno reduza toda a multiplicidade temática da obra de Gonçalves Dias, por exemplo, a apenas dois tópicos. Das oito poesias selecionadas, quatro -"Canção do Exílio", "Canção do Tamoio", "O Canto do Piaga", "I-Juca Pirama"- lá estão porque foram, para falar como Antonio Candido, "incorporadas ao orgulho nacional como a magnitude do Amazonas, o grito do Ipiranga ou as cores verde e amarela". Três das restantes, "Ainda uma Vez Adeus", "Desesperança" e "Se Queres que eu Sonhe" foram escolhidas por abordar temas -como a incompreensão social e a insatisfação amorosa- associados à concepção, vigente ainda hoje para o senso comum, que designa por românticos indivíduos de índole sentimental.
Além desse descabelamento pela virgem ideal, a popularidade do romantismo deve ser atribuída sobretudo à renovação das formas poéticas. Estilizando temas do cotidiano trivial, rompendo com a classificação hierarquizada dos gêneros, absorvendo modelos populares ou quebrando a forma rígida dos versos em ritmos de maior cadência musical, promoveu-se uma democratização do padrão literário que favoreceu sua assimilação e difusão.
A sua maior riqueza advém, porém, de uma série de outros procedimentos, nem sempre ressaltados pela crítica. Primeiro, o romantismo incorporou deliberadamente a contradição, tomada como expressão mais adequada da alma humana. Concomitantemente introduziu -ao mesmo tempo em que empregou a emoção como elemento propulsionador da inspiração poética- a faculdade reflexiva, legitimando a adoção da ironia e da autoparódia como recursos capazes de relativizar verdades unilaterais, controlar os excessos sentimentais do poeta e sistematizar técnicas de construção no interior de uma mesma conformação artística.
A seleção de Alexei Bueno não permite ao leitor o acesso aos poemas mais representativos desses outros procedimentos. Privilegia em Álvares de Azevedo, por exemplo, poemas que abordam ou o desejo de morrer ou a insatisfação amorosa. Apesar de a opção por este tipo de lírica não ocultar a grande capacidade criativa do poeta, ela reflete apenas uma de suas "faces", o que denuncia uma leitura bastante parcial. Ao excluir poemas de cunho irônico ou satírico, como "O Poeta Moribundo", a antologia de Bueno não só ignora a sistematização, nesta obra, de várias consciências poéticas e de princípios estéticos antagônicos -por meio dos quais o poeta esperava ser lembrado-, mas também neutraliza uma lira conflituosa e desregrada.
O próprio Manuel Bandeira, ao recolher poemas de cunho amoroso, tampouco escapa dessa tendência. Diga-se, porém, a seu favor, que isso se deve a uma atenção à produção crítica de sua época, especialmente ao vínculo "amor e medo", trabalhado por Mário de Andrade num artigo clássico, mas infelizmente muito datado.
Em descompasso com a crítica contemporânea, a antologia de Alexei Bueno exclui poetas como Bernardo Guimarães e Sousândrade que, embora desprezados pelos estudos do passado, desconhecidos do grande público e, em certa medida, ignorados pelos contemporâneos, tornaram-se hoje, após a reavaliação da crítica, referência obrigatória. Ambos, seja por tematizarem o deslocamento da lírica na vida moderna, seja por apresentarem uma aguda consciência crítica, elaboraram processos de criação que lhes possibilitaram refletir sobre as técnicas de construção e desenvolver teorias originais acerca da poesia e da arte.
Esta recusa ao diálogo com a crítica literária produz, na antologia de Bueno, um cânone no mínimo desconcertante. Reincorpora poetas desprezados, desde o início do século, tanto pela irrelevância de alguns quanto pela unanimidade acerca da mediocridade poética de outros. No primeiro caso, a inclusão de "Violetas" -único poema minimamente relevante do Marquês de Sapucaí- numa seleção que não pretende traçar panorama, e tendo em conta ainda a exiguidade de seu espaço, só se compreende pelo critério "estilo popular" de suas quadrinhas, já que outro nome de maior relevância, Borges de Barros, fosse realmente considerado o critério "poetas de transição", seria citado. No segundo caso figura a inclusão de Félix Xavier da Cunha -desprezado inclusive por Silvio Romero e objeto de apenas uma notinha de Afrânio Peixoto- na geração de Casimiro de Abreu.
Enquanto o panorama organizado por Manuel Bandeira mantém certa proporcionalidade entre o número de poemas selecionados dos principais poetas e o espaço dedicado aos menores, a antologia de Alexei Bueno, por sua vez, norteada apenas por critérios subjetivos, desequilibra o conjunto, não só por incluir poucos poetas menos conhecidos, mas também por conceder demasiado espaço a Castro Alves (cerca de um terço do livro), em detrimento de seus mestres.

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