São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
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Laços com o pensamento medieval

JOSÉ CARLOS ESTÊVÃO

Os autores modernos gostam de se apresentar como arautos do novo -ainda quando retomam as mais surradas fontes-, ao contrário de seus antecessores medievais, para os quais a imputação de "novidade" soava como insulto. As razões da diferença não são alheias à empreitada teórica que anima a uns e outros, mas o que nos importa aqui é que muitas vezes os leitores contemporâneos se deixam levar seja pela presunção de novidade dos modernos, seja pelas declarações de fidelidade à tradição dos medievais.
A trajetória apresentada por Nascimento em "De Tomás de Aquino a Galileu" é um esforço permanente para evitar tal ilusão. Nem as teses modernas -em sentido lato- são sempre tão "novas" como fazem crer seus porta-vozes, nem os medievais foram ou pretenderam ser fiéis expositores da verdade antiga. Mais precisamente: as rupturas que separam intelectualmente Idade Média e modernidade são, por certo, reais, mas nem sempre estão onde esperamos encontrá-las. Apreendê-las pode obrigar a um grau maior de rigor e sutileza do que aquele com que se trabalha nas grandes periodizações, exigindo o percurso interno pelas obras que se pretende examinar.
O primeiro e mais extenso dos artigos desta coletânea, "O Estatuto Epistemológico das 'Ciências Intermediárias' segundo S. Tomás de Aquino", é paradigmático deste procedimento. Aliás, pode-se falar em modelo em mais de um sentido: malgrado a pletora de trabalhos sobre Tomás de Aquino, trata-se de uma das primeiras contribuições acerca do tema na literatura especializada mundial (a primeira edição é em francês). Ao mesmo tempo, tem sido exemplar como padrão segundo o qual se deve desejar que se faça história da filosofia medieval no Brasil.
"Ciências intermediárias" são aquelas que "aplicam os princípios matemáticos às coisas naturais", e das quais um bom exemplo é a astronomia, "que aplica a consideração da geometria e da aritmética ao céu e às suas partes". Nada soa mais prosaico aos nossos ouvidos, a não ser quando nos lembramos que a física aristotélica de então era totalmente avessa a qualquer "matematização". O tema não era desconhecido de Aristóteles e seus comentadores, mas aparecia antes com um problema (o da mistura de "gêneros") e só em Tomás vem adquirir um perfil positivo.
A sensação de reconhecimento que pudesse enganar o leitor contemporâneo desfaz-se a seguir, quando o autor descreve a relação arquitetonicamente hierarquizada que Tomás estabelece entre "ciências subalternantes" (como a aritmética) e "ciências subalternas" (como a astronomia e a música). O conceito de ciência em jogo é aristotélico -e não moderno-, mas já não se pode dizer que seja o de Aristóteles nem tampouco aponta para o universo da física moderna.
A dificuldade maior, no entanto, é que a elaboração destes conceitos não se encontra, privilegiadamente, onde seríamos tentados a buscá-la -por exemplo, no comentário à "Física"-, mas lá onde se apresentaram necessários para a construção (teológico-) filosófica de Tomás de Aquino: nas distinções entre fé e razão, teologia e filosofia e, muito em particular, na explicitação do caráter científico da teologia que pretende praticar. Portanto, na própria "Suma de Teologia", na exposição do tratado de Boécio sobre a Trindade etc.
Esta divergência de perspectiva é determinante: enquanto um moderno, Descartes, digamos, se vê obrigado à metafísica, tendo em vista o estabelecimento de uma física, um medieval pode ser levado ao que chamaríamos "epistemologia" por razões (filosófico-) teológicas.
Uma citação da "Suma de Teologia" (I, q.1, a.1) exemplifica bem o uso que Tomás faz da noção de "ciências intermediárias": "Há dois gêneros de ciências: a que procede de princípios evidentes para a luz natural do intelecto, como a geometria; e a que procede de princípios evidentes para a luz da ciência superior, como a perspectiva procede dos princípios evidentes da geometria. E deste modo a teologia é a ciência que procede dos princípios evidentes para a luz da ciência superior, isto é, a de Deus e dos bem-aventurados. Assim como a música recebe seus princípios do aritmético, a doutrina sacra recebe seus princípios revelados por Deus". Nada mais distante do que as preocupações posteriores sobre a física; no entanto, é a própria concepção de ciência que é afetada e não deixa de ter, de imediato, amplas repercussões no âmbito das preocupações "epistemológicas".
Nascimento, praticando boa história da filosofia, deixa-se levar pela articulação particular da obra de Tomás de Aquino, de tal forma que pode apresentar ao leitor concepções insuspeitadamente originais e fecundas, nas quais se articulam de maneira coerente tanto a recepção da filosofia antiga quanto desdobramentos que apontam para a laboriosa invenção de uma ciência nova.
Os artigos seguintes do itinerário de Nascimento são dedicados a Roger Bacon e mostram que a crescente referência à matemática no que se refere à "ciência natural" não é uma especificidade de Tomás de Aquino, mas corresponde a uma tendência consistente: veja-se o tratado "De Multiplicatione", expondo, sempre nos quadros da física aristotélica, "a idéia de tratar geometricamente os movimentos segundo a forma (geração e corrupção, alteração, aumento e diminuição)".
Os quatro artigos finais invertem a perspectiva: buscam apontar em Galileu o que talvez deva ser tributado à tradição medieval. Como que alinhavando todo o conjunto de escritos, Nascimento reencontra na física de Galileu a mesma concepção de "ciência intermediária" descrita em estado seminal na teologia de Tomás de Aquino.
São artigos curtos e explicitamente polêmicos, um deles em duas versões, fruto da discussão suscitada. E que esclarecem alguns pressupostos metodológicos do autor: manter-se colado à leitura rigorosa dos textos, mas apresentá-los de tal forma que constituam argumento em favor de uma leitura que enfatiza antes a continuidade histórica do que as rupturas: contra uma leitura "retrospectiva", isto é, que lê os autores do passado à luz do desenvolvimento posterior da ciência (ou da filosofia), "ler Galileu prospectivamente, isto é, a partir do que ele podia conhecer" (pág. 171). Não se trata de negar que haja solução de continuidade entre a física (e a metafísica) antigas e medievais, mas que esta ruptura se dá a partir da tradição recebida -contra ela, mas não sem ela.
Afinal, na falta de uma filosofia da história consistente, a ruptura histórica não é menos misteriosa para nós do que uma continuidade que se possa constatar.
Embora os artigos que compõem a coletânea "De Tomás de Aquino a Galileu" tenham sido escritos durante um longo período de 25 anos (na sua maioria, só agora acessíveis ao leitor brasileiro) e sejam independentes entre si, ganha-se muito lendo-os como um livro coeso, em que os temas são apontados e retomados em chave diversa, mas podendo ser enfeixados numa mesma totalidade: a paciente e laboriosa produção de alguns dos conceitos determinantes da história da ciência moderna.

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