São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
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O cinema como parricídio

INÁCIO ARAÚJO

O Brasil vem constituindo, desde o fim dos anos 40, um conhecimento frenético porém inconstante sobre o filme japonês. A presença pioneira de José Fioroni Rodrigues, os textos de Rubem Biáfora em "O Estado de S. Paulo", as críticas de Orlando Parolini e Jairo Ferreira no "São Paulo Shimbum", o Grupo de Estudos Fílmicos (GEF) são marcas de uma cultura que se beneficiou do fato de ser São Paulo a cidade com mais filmes japoneses exibidos em todo o mundo (fora do Japão, claro), de no bairro da Liberdade funcionarem em dado momento nada menos do que quatro cinemas dedicados exclusivamente à exibição desses filmes.
Essa herança não se perdeu, embora essas quatro salas tenham fechado. O cinema conta, na aproximação e no conhecimento que temos do Japão e de sua cultura, provavelmente mais do que outra arte, e não será exagero dizer que olhamos esse país com um interesse que não vem do "milagre" industrial do pós-guerra, mas do conjunto de imagens que nos foi legado (em parte literalmente: uma parte dos filmes exibidos entre os anos 50 e 60 pertencem hoje ao acervo da Cinemateca Brasileira).
Enquanto esperamos pela história do cinema japonês prometida por Fioroni Rodrigues, Lúcia Nagib realiza um trabalho que de certa forma incorpora essa experiência, acrescentando-lhe um outro olhar. Lúcia organizou duas antologias de textos sobre os mais clássicos autores nipônicos (Kenji Mizoguchi e Yasujiro Ozu), antes de publicar "Nouvelle Vague no Japão" e mais recentemente "Nascido das Cinzas", monografia sobre o mais conhecido dos autores modernos japoneses, Nagisa Oshima.
Seu trabalho beneficia-se de dois elementos: a experiência universitária e uma permanência de vários anos no Japão. A primeira acrescenta sistematização onde antes vigorava uma anarquia saudável, mas que de algum modo confinava e restringia o conhecimento. A segunda modifica substancialmente a relação com o cinema japonês. Por mais forte, apaixonada e crítica que fosse a cinefilia dos anos 50/60, ela se baseava num olhar de fora para dentro. Eram sempre estrangeiros que procuravam navegar num conjunto de signos produzidos por uma outra cultura. Absorviam de filmes de samurai a dramas familiares, com uma capacidade crítica não raro deslumbrante (é notável que aqui, do outro lado do mundo, um cineasta como Eizo Sugawa seja mais admirado até do que no Japão, onde seu cinema ainda enfrenta resistências).
"Nascido das Cinzas", ao contrário, baseia-se na experiência japonesa da autora, o que lhe permite, a partir de Nagisa Oshima, lançar um olhar fundado não sobre a rejeição do Ocidente (ou pelo reconhecimento de uma cultura outra), mas por um diálogo que hoje se estabelece de maneira mais fluente.
Se no passado alguns desses cinéfilos tomaram a experiência de Oshima em estado bruto, como puro cinema, a Lúcia Nagib interessa referenciá-lo à história de seu país. É uma perspectiva incontornável, no caso de Oshima. "Nascido das Cinzas" parte da idéia de que a obra de Oshima funda-se na rejeição da história japonesa, seja o militarismo que leva à Segunda Guerra, seja o humanismo que se instaura no pós-guerra. Essa atitude levará Oshima à negação em bloco do cinema japonês clássico. Cinema de pais, de regras, de obediência.
É a atitude do filho como assassino do pai que Lúcia Nagib coloca no centro da noção de autoria, chamando a atenção para o fato de que a criminalidade será um aspecto constante no cinema de Oshima. Se Samuel Fuller disse do cinema que "é um campo de batalha", Oshima dirá que é um ato criminoso.
O crime não é apenas uma figura necessária ao funcionamento de seu cinema. Ele se reflete "na rebeldia aos cânones formais e, no campo temático, na desobediência sistemática aos preceitos cultivados até então". A idéia de um autor nascido das cinzas, para a autora, é múltipla: ela diz respeito às ruínas da Segunda Guerra, ao cinema clássico, ao sistema de estúdios, ao coletivismo. Oshima aparece, assim, como um nascido de si mesmo, em quem a negação se torna condição de existência. Crime e suicídio são, portanto, figuras recorrentes no imaginário do cineasta.
Se a negação é o aspecto determinante das relações de Oshima com a cultura e a histórias japonesas, existirá em seu cinema uma atitude positiva, inovadora, de afirmar o indivíduo contra o coletivo. A rebeldia contra a ordem paterna implica a criação de um cinema que busque intervir diretamente na ordem social, tal como ela se apresenta. Daí a familiaridade imediata que seus filmes proporcionam ao espectador ocidental. De certa forma, eles são feitos sob o signo do vivido, falam de aspectos da existência próximos à do cineasta (e nisso se aproximam do que se fazia na Europa naquele momento). Ao mesmo tempo, acrescentam-lhe a dimensão da urgência, da inquietação em relação ao conjunto da sociedade (nesse aspecto, são próximos do Cinema Novo, que surgia mais ou menos no mesmo momento).
Oshima parece vivenciar a guerra como uma vitória. Ela abre perspectivas para libertar o país da opressão interior. Com isso, o cinema abre-se para o acaso, rompe com as regras (de filmagem, mas também, sobretudo, de produção), instaura a liberdade como valor. E passa a rejeitar tanto a câmera fixa de Ozu como os "travellings" extensos, porém milimétricos, de Mizoguchi, opondo-lhes a fragmentação, a descontinuidade. Ao fluxo regular de imagens do cinema clássico japonês (não importa qual sua vertente), Oshima opõe as incertezas da existência; aos códigos fixos de comportamento, a angústia de uma realidade múltipla; ao amor, a sexualidade.
Repassando filme a filme do autor, Lúcia Nagib dá conta de um cineasta que nasce de maneira quase monstruosa, pois, se os franceses da Nouvelle Vague buscavam reencontrar uma tradição (a de Renoir ou do cinema americano), e se os brasileiros do Cinema Novo forjavam essa tradição, naquele mesmo momento o cinema de Oshima se constituía sobre a rejeição, simultânea, da história e do cinema japoneses.
"Nascido das Cinzas" é o relato minucioso dessa ruptura possivelmente única na história do cinema mundial. Ao centrar fogo nessa idéia, o livro de Lúcia Nagib abre espaço para uma indagação da qual passa ao largo, e talvez caiba à própria autora responder, no futuro: até que ponto essa rebelião contra a história, tradições e cinema japoneses não é, ela própria, uma atitude perfeitamente japonesa?
Vistos hoje, os filmes de Oshima não perdem suas características inovadoras, por certo, mas parecem perfeitamente japoneses, no sentido mais tradicional da palavra. Nesse particular, é ao mesmo tempo elucidativo e intrigante o que a autora insere como apêndice ao livro. Ela pergunta, em dado momento, por que Oshima se veste de modo tão "chamativo". Oshima responde que isso é um modo de expressar rebelião contra a sociedade japonesa. Pode ser, mas com frequência esses trajes chamativos que usa, no Japão ou fora dele, são quimonos. Livrar-se do uniforme pode não ser tão fácil assim.

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