São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Dicionário banal e psicologista

FRANKLIN DE MATOS

Como boa parte dos filósofos da Ilustração, Jean-Jacques Rousseau conhecia muito bem o verbete de dicionário enquanto forma de expressão literária e filosófica. Como se sabe, escreveu para a "Enciclopédia" não só o famoso artigo "Economia Política", mas também mais de duzentos tópicos sobre música, e desse material compôs, anos mais tarde, um "Dicionário de Música". É divertido, portanto, imaginar o que diria ele se soubesse que um editor da posteridade incluiria sua obra numa coleção cujo objetivo é expor o pensamento dos grandes filósofos por meio de dicionários.
Para um autor como Rousseau, a idéia até que não seria má. Afinal -não se cansava de afirmar ele, ao insistir na coerência de seu pensamento-, se jamais se contradizia nos conceitos, às vezes se traía quanto às expressões. E, para esclarecer os diferentes usos da mesma expressão, nada mais indicado que um bom dicionário...
O mais provável, porém, é que Rousseau recusasse a idéia. Com efeito, apesar de ter escrito tantos verbetes, no "Discurso Sobre as Ciências e as Artes" expressou (contradição tipicamente sua...) fortes reservas a respeito do próprio ideal ilustrado de divulgação do saber, ao qual estava ligada, como se sabe, a voga dos dicionários.
E, como não poderia deixar de ser, é bem esse o objetivo do "Dicionário": " proporcionar, numa forma acessível, suficiente informação sobre as principais obras e idéias de Rousseau, assim como seu exame, a fim de habilitar o leitor a adquirir uma noção abrangente do homem e de suas realizações". Para tanto, além dos chamados "verbetes variados", o dicionário contém entradas "sobre as obras" e "sobre as idéias" de Rousseau; o material se completa com as "seções introdutórias" (biografia, cronologia, avaliação do alcance da obra), as remissões, a bibliografia e o índice remissivo. Conforme adverte o autor, o conjunto enfatiza os escritos filosóficos, mais precisamente a "filosofia social, política e moral" de Rousseau, deixando em segundo plano sua obra literária e musical.
O que quer que pudesse dizer Rousseau, não tenho nada a objetar contra os textos de divulgação e, além disso, sinto a maior simpatia por todos os tipos de dicionário. Mas, como dizia com notável simplicidade o matemático D'Alembert -que, como se sabe, era grande entendido na matéria-, para serem "úteis", os dicionários (e, aliás, os "jornais literários"...) precisam antes de mais nada ser "bem-feitos". E certamente este não é o caso do "Dicionário Rousseau".
Não posso aqui descer ao varejo e enumerar as afirmações equivocadas do livro, que são muitas. Tampouco pretendo formular qualquer tipo de receita sobre o gênero, mas apenas chamar a atenção para alguns problemas gerais que me parecem inadmissíveis num dicionário filosófico desse tipo.
Logo de saída, no verbete "Alienação", o leitor topa com um procedimento suspeito. Fica sabendo que "Rousseau também havia identificado o fenômeno do homem e da sociedade 'alienados"', embora não tivesse empregado o termo explicitamente, a exemplo de Hegel e Marx. A identificação, segundo o verbete, apareceria nas páginas que Rousseau consagra para distinguir duas paixões: o "amor-de-si mesmo" e o "amor-próprio".
A distinção é fundamental para se compreender tanto as diferenças que Rousseau faz entre natureza e sociedade, quanto entre formas de sociabilidade fundadas na servidão e desigualdade, e formas baseadas na liberdade e igualdade. O amor-de-si mesmo é um sentimento "natural" e "absoluto" que leva todo animal e zelar pela própria conservação; no caso específico do homem, tal sentimento, dirigido pela piedade e razão, leva à "humanidade" e à "virtude". Quanto ao amor-próprio, trata-se de uma paixão "factícia" e "relativa", nascida em sociedade, que leva cada um a fazer mais caso de si mesmo que dos outros e, por isso, inspira aos homens o desejo de dominação e todos os males que causam uns aos outros.
Ora, ainda que se detenha exaustivamente na transformação do amor-de-si mesmo em amor-próprio, Rousseau jamais chamou o fenômeno de "alienação". No Livro 1º do "Contrato Social", o filósofo recorre ao termo, atribuindo-lhe entretanto uma significação que nada tem a ver com aquela transformação. Como bem afirma um estudioso: "O que é alienar (para Rousseau)? 'É dar ou vender'. Notemos que a palavra 'alienar' ainda não reuniu o complexo feixe de significações que 'alienação' receberá de Hegel, de Marx e de seus comentadores. Alienar é transmitir a um outro ('alienus', em latim o estrangeiro) seus direitos sobre um objeto, quer gratuitamente (dar), quer em troca de um preço (vender)"(1). O termo se aplica tanto ao contrato de servidão, quando se aliena a liberdade por um preço ilusório, quanto ao contrato ideal, no qual a liberdade natural é alienada por esta outra liberdade que é "a obediência a uma lei que nós mesmos nos prescrevemos".
O autor do dicionário não chega a ignorar tal emprego da palavra, mas refere-se a ele de passagem, ao final do verbete, todo consagrado à questão do amor-próprio.
É bem verdade que a operação -ler Rousseau, gratuitamente, a partir de Hegel e Marx- não causa maiores prejuízos ao dicionário, salvo um verbete inútil. Ela aponta, porém, emblematicamente, para o grande problema do livro: o seu descaso com a história da filosofia.
Com efeito, os verbetes não fazem esforço algum para determinar a gênese das formulações de Rousseau ou a rede de aliados e adversários implicada em cada conceito. Em "Amor-de-si Mesmo", por exemplo, nenhuma palavra sobre as origens estóicas do conceito e sobre o diálogo de Rousseau com Hobbes e Espinosa; em "Amor-próprio", não há sinal algum da influência de Hobbes ou dos moralistas franceses, especialmente La Rochefoucauld e Vauvenargues. Em consequência, tópicos como esses ou afins, que remetem à antropologia rousseauniana (é o caso ainda de "Piedade") acabam deixando no leitor a incômoda impressão de psicologismo e banalidade. A ausência de preocupação histórica também é patente num verbete tão decisivo como "Estado de Natureza", que só indica passageiramente as intensas polêmicas contra o mesmo Hobbes e contra os jusnaturalistas.
Óbvio que a troca de ponto de vista resultaria em algo muito melhor, mas de qualquer modo ainda precário, pois penso que os escritos de Rousseau não sejam muito adequados à forma do dicionário. Diferentemente de Descartes ou Kant, cujas filosofias podem (devem) ser tratadas como um encadeamento de conceitos e, portanto, são "dicionarizáveis", a unidade e coerência da obra de Jean-Jacques pertencem a outra ordem. Além de livros conceitualmente impecáveis, como o "Discurso Sobre a Desigualdade" e o "Contrato", Rousseau escreveu vários textos de apologética, destinados à defesa de si mesmo e de sua obra. Ora, não é possível ler os primeiros sem levar em conta os outros. Não é possível entender os dois "Discursos" -e o pensamento de Rousseau como um todo- sem o relato sobre a "iluminação de Vincennes", do qual ele nos legou umas quatro versões. E de que modo adequar a um dicionário a substância de suas "confissões", se não confinando-as a verbetes -afinal, sempre superficiais- que tratam das obras nas quais foram feitas? Ou ainda relegando-as à notícia biográfica que abre o "Dicionário" e, aliás, aproxima-o do famigerado gênero "vida e obra"?
Mas não é disso que se trata aqui. Certamente não é o caso de explicar a obra de Rousseau pela sua vida e nem mesmo -como certa vez disse Merleau-Ponty a respeito de Cézanne- de entender sua vida a partir da obra. Afinal, foi outra a lição de Starobinski, que a meu ver atreveu-se à mais abrangente interpretação de Rousseau (2). Para os que não sabem, sua grande premissa é que Jean-Jacques deve ser lido do modo como gostava de entregar-se, na "fusão e confusão da existência e da idéia" -como se sua obra representasse "uma ação imaginária" e seu comportamento, "uma ficção vivida". Difícil dicionarizar uma coisa e outra.

NOTAS
1. Florence Khodoss, "Du Contrat Social de J.-J. Rousseau", Paris, Ed. Pédagogie Moderne, 1980, pág.47.
2. Jean Starobinski, "A Transparência e o Obstáculo", São Paulo, Companhia das Letras, 1991.

Texto Anterior: O cinema como parricídio
Próximo Texto: A transformação da historiografia política
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.