São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
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O império da história

JOSÉ JOBSON A. ARRUDA

Braudel foi o maior historiador do século 20. As "Mélanges" e "Journées" realizadas ainda em vida, comprovam sua entronização no panteão dos historiadores. Após a defesa de sua tese "O Mediterrâneo", publicada em 1949, ancorado na revista "Annales" e na 16a Seção da EPHE, instrumentos institucionais de sua afirmação, direcionou as pesquisas da quase totalidade dos historiadores franceses, alocou-os em postos universitários, entrincheirou-se nas casas editoriais e agências de financiamento, derreou a velha história positivista de Langlois e Seignobos, instalando no poder a nova história, aberta às demais ciências sociais, propondo-se a defender a unidade das ciências do homem contra a ameaça permanente de fragmentação do conhecimento.
Assim como 1949, 1979 também é uma data emblemática. É a data de publicação dos três volumes de "Civilização Material, Economia e Capitalismo" na França. Síntese notável, que exigiu a reelaboração do primeiro volume, já publicado em 1967 na coleção "Destins du Monde", fundada por Lucien Febvre. A primeira tradução portuguesa saiu em 1969 pelas Edições Cosmos e, somente agora, ganha nova tradução entre nós. Nesse ínterim, Braudel encontrou tempo e disposição para brindar a sua segunda paixão, a França, homenageando-a com os três volumes de "L'Identité de la France", publicados post-mortem, em 1986.
Trata-se do mesmo Braudel, aquele de "O Mediterrâneo" e este de "Civilização Material", duas de suas finalidades eletivas? Sua arquitetura interpretativa conservava-se intacta? Não teria sido afetada pela contemporaneidade, por ele considerada a "motivação secreta da história?". Já em 1976, no prefácio da 3a edição de "O Mediterrâneo", Braudel se reconhece modificado, remetendo o leitor para o primeiro volume de "Civilização Material". Preserva, contudo, o tríptico dos tempos: o geográfico (quase imóvel), o social (lento) e o individual (acelerado), facultando ao historiador a realização do itinerário inverso, ou seja, partir do tempo curto da política até encontrar os ritmos mais lentos dos tempos médios e a quase imobilidade da longuíssima duração. No prefácio da 2a. edição, de 1963, enfatizava as relações verticais entre os três planos, em cujos níveis a realidade poderia ser apreendida diferentemente, acentuando-se a unidade da história visível na pluralidade de abordagens. Os tempos médios, no entanto, guardavam sua hegemonia por se condensarem na charneira da curta e da longa duração, que permite à história cumprir o seu papel, "o de responder aos angustiantes problemas atuais". Elegendo-se o Mediterrâneo por personagem central, busca-se aí a globalidade, não o contingente, "uma nuvem de futilidade que pouco tem de comum com a história".
"Civilização Material, Economia e Capitalismo" atendia aos pré-requisitos estabelecidos por Marc Bloch e Lucien Febvre: compreender os problemas fundamentais da humanidade, no terreno da vida material, dos comportamentos biológicos, da alimentação, da arqueologia, abrindo-se para o pesquisador campos insuspeitados, insólitos, a desafiar a sua reflexão teórica. O resultado é uma abrangência ambiciosa. "Um balanço do mundo", um estudo dos homens enclausurados dentro das fronteiras do possível e do impossível. Um inventário da materialidade histórica na sua cartografia comparativa, centrado na vida das grandes massas, emergindo daí um grande painel: os alimentos, as habitações, os utensílios, a aldeia, a cidade, o vestuário, o luxo, os instrumentos monetários.
No frontispício do grande cenário surgem os homens. Pouco numerosos ainda, mas duplicaram em quatro séculos, exceto pela "débâcle" populacional pré-colombiana. A mesmice da vida dos homens comuns contrasta com o esplendor das camadas privilegiadas e os alimentos criam civilizações: do arroz, do milho, do pão e da carne com suas variedades. O lado sombrio é representado pelas fomes, pestes, holocaustos. Os pormenores da vida cotidiana completam o detalhamento do cenário, as amenidades prodigalizadas pelas bebidas, os vinhos, as aguardentes novas, a cerveja, o chá, o chocolate, o café e, no limite, o hábito do tabaco. Mobiliário e vestuário, hábitos à mesa, referidos à sua significação social. Alargando o cenário, repontam as cidades, formigueiros humanos e, neles, o distinguido papel da moeda: de ouro, de prata, de cobre e sucedâneos. Mar e terra, ausências sentidas. Há muito mais espaço na obra para os alimentos do que para habitação e vestuário.
Braudel recusou-se a definir o sentido da expressão civilização material, pois considerava as teorias estéreis. Para ele, a "vida material são homens e coisas, coisas e homens", "aquela zona espessa, rente ao chão", no fundo a outra metade informal da atividade econômica, "essa infra-economia" cujo último andar é ocupado pelo capitalismo. Por isso o homem ocupa o centro da cena histórica, explicitado na repetição de seus gestos e hábitos: "onipresente, invasora, esta vida material corre sob o signo da rotina". Imprime sua marca na história, pois é "um passado obstinadamente presente, voraz (e que) devora monotonamente o tempo frágil dos homens". E não são poucos os homens submetidos a esta lei, contam-se 80% a 90% entre todos os habitantes do mundo. Talvez a noção de cultura material presente em Braudel desvele a sombra do marxismo que ronda o seu costado. O diálogo com Marx é permanente nessa obra. Paga-lhe tributo na adoção do vocabulário, mas não do procedimento analítico. C. Hill lembra, apropriadamente, que Braudel retém algo da curiosidade voraz de Marx e da sua capacidade para relacionar de maneira criativa as idéias à vida material de onde provinham. Este livro marca o nascimento de um campo específico de estudo da história, o da cultura material, até então privilégio dos historiadores da arte, da arquitetura e dos etnólogos.
O conteúdo da noção de tempo lento foi redimensionado. Em "O Mediterrâneo" era o tempo que não se "quis desprezar". Agora, a coleção episódica de milhares de "faits divers", aos quais se recusa a categoria de "acontecimentos", pois seria elevar-lhes a importância e perder sua natureza específica. É a poeira da história, uma micro-história cujas expressões captadas na longa seriação "traçam as linhas de fuga e o horizonte de todos estes cenários passados". Introduzem uma ordem, pressupõem equilíbrios, definem permanências. Em suma, pela sua unicidade, pela sua recorrência, generalizam-se, tornam-se estrutura. É a elevação da vida cotidiana aos domínios da história, entendendo-se a cotidianidade como fatos miúdos que quase não deixam marca no tempo e no espaço, mas cuja repetição constitui realidades em cadeia, servindo cada um de testemunho aos demais.
Estamos diante de uma inflexão. Em 1949 afirmava-se que o cotidiano pouco tinha a ver com a grande história. Acentuava-se a globalidade, considerava-se o estudo do gosto uma futilidade inútil. Os instantâneos surpreendidos em variadas sociedades poderiam revelar diferenças "nem todas superficiais", ou ainda: "é ao longo de pequenos acidentes, de relatos de viagem que uma sociedade se revela". Reforçava-se a intersecção temporal, sobrelevando a verticalidade na relação entre os planos superpostos, acenando para a existência de múltiplas temporalidades.
O segundo volume desta obra, "O Jogo das Trocas", alça vôo rumo aos agrupamentos sociais e às civilizações que expandiram seus limites até os confins do possível. Um confronto entre a economia e a atividade superior do capitalismo, a passagem do "rés-do-chão ao primeiro andar". O terceiro volume, "O Tempo do Mundo", contém o que se poderia denominar "uma história", uma espécie de superestrutura da história global, na qual o tempo e o espaço da história européia jogam um papel decisivo, modelando os longos períodos da trajetória mundial. Em síntese, Braudel transformou o capitalismo, cuja significação abstrata foi um dos poucos a perceber ao lado de Marx, num "modelo essencial", num tipo ideal.
Recai sobre o primeiro volume, portanto, a grande originalidade da obra. Nele, a mente atilada de Braudel permite-nos colecionar preciosidades que fluem das comparações entre as várias culturas e suas significações, repositórios de uma multidão de bens materiais e espirituais. Um estado de espírito, um estilo de vida, presente na arte, na literatura, na ideologia, na tomada de consciência. Nesse passo, é necessário cuidar-se contra as armadilhas do texto. A forma leve, quase poética, tomada de empréstimo à literatura, atrai o leitor incauto ou resenhistas açodados que podem se perder na aparência sedutora, como se o texto fosse o fruto de uma curiosidade malsã, de um descompromissado voyeurismo ao sabor da história. Engano. Não se deve transformar a argúcia, a acuidade, a finura criativa do historiador Braudel num bazar de exoticidades.
Temos a sensação de uma história aberta mas impalpável, que escorre por entre os dedos do leitor que tenta apreendê-la numa expressão, num conceito. Sem linearidade temporal, incerta, retorcida, realiza o convívio da mudança e da permanência sob o mesmo teto. Uma temporalidade intermitente, entremeada de avanços e recuos, que põe e repõe o fato em múltiplas durações, em variados espaços, plenos de vida, que lhe dão significação histórica. Não é obra de leitura tranquila. Inquieta, impõe uma certa desobediência ao Braudel pré-concebido de "O Mediterrâneo", expresso na amenização das certezas, das racionalidades interpretativas.
O reforço da dialética passado-presente complexifica a noção de tempo. O presente é em larga medida a presa de um passado que se obstina em sobreviver. O passado, por suas regras, diferenças e semelhanças, é a chave indispensável para a compreensão séria do tempo presente. Como observou J. C. Perrot ("Annales", nº 1, 1981), há em Braudel uma forte aderência das sociedades ao seu tempo, reforçando o papel da cronologia no engastalhamento dos dados no eixo do tempo, sem assumir, contudo, a ilusão positivista de que a cronologia fina refina o conhecimento histórico. Assim, a "poeira da história", incessantemente repetida, cria uma realidade e nos faz viver a cada instante no tempo curto e no tempo longo, uma heterogeneidade que se impõe como um dado imediato, que tira sua complexidade da longevidade e obriga o historiador ao manejo cuidadoso da descontinuidade: "A duração não existe como dado na sociedade, existe como problema".
Como se explica a mudança de rumo na trajetória intelectual do autor? Segundo Braudel, uma das motivações foi o impacto da crise de 1973-1974, que estimulou a expansão da economia informal, "um amplo rés-do-chão", que representaria de 30% a 40% das atividades econômicas dos países industrializados. A segunda hipótese remete-nos à teoria e ao tempo.
Poderia Braudel ter permanecido infenso às fortes críticas que os seus paradigmas historiográficos vinham sofrendo por parte dos novos historiadores? De fato, um novo cânone historiográfico se colocava desde que Pierre Nora anunciou a nova coleção "La Bibliothèque des Histoires", uma antítese de "Destins du Monde". Postulava-se a implosão da grande história, a extensão ao mundo da consciência histórica que tinha sido apanágio da Europa. Novos recortes do passado, novos objetos, novas abordagens, em suma, um novo método que representava uma drástica inflexão epistemológica, consolidada na publicação, em 1974, de "Faire de l'Histoire" e concretamente realizada no best seller de Le Roy Ladurie, "Montaillou", editado em 1975.
O modelo deixava de ser "O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico" e passava a ser o cotidiano de uma minúscula cidade medieval francesa, num curto período de trinta anos. Era a micro no lugar da macro-história, a ênfase na dimensão descritiva do arquivo, a busca da alteridade no interior da própria civilização ocidental, nas profundezas do passado, reorientando a sensibilidade histórica para os domínios da cultura e do estudo das mentalidades. Privilegiava-se a dimensão litúrgica das sociedades, recorria-se à diferenciação de tempos, realçando o papel dos fenômenos tradicionais, somente apreensíveis na longa duração.
Braudel acusou o golpe. A flexibilização de seu esquema interpretativo e, sobretudo, o reforço da intersecção temporal aliado ao novo status assinalado ao cotidiano, o revelam. Rendição incompleta, pois continua a pôr nos tempos médios a responsabilidade pela ininteligibilidade da história.
A terceira vertente explicativa remete à temporalidade contemporânea, que atingiu Braudel da mesma forma que atingira os senhores da "Nouvelle Histoire". Recuperemos a ambientação histórica que viu nascer "O Mediterrâneo", um mundo marcado pelos totalitarismos à esquerda ou à direita, todos eles homogeneizadores, edificadores de uma grande explicação racional, de uma vasta racionalidade histórica. Esta era a época de Braudel, jovem professor, pesquisador, soldado e militante da história. Seus paradigmas não poderiam ficar imunes ao tempo. Seu modelo interpretativo encontrava ressonância nas amplas racionalidades. Seus tempos entrecruzavam-se numa ossatura rígida.
Mas as totalidades ruíram. O nazismo, o fascismo, o stalinismo, o imperialismo, o colonialismo e junto a razão iluminista. Ao mesmo tempo, a expansão dos "mass media" exibia ao mundo a multiplicidade de culturas e subculturas, a pluralidade compulsiva, irrefreável, que impossibilitava a apreensão da história global a partir de pontos unitários. Rompida a idéia de uma racionalidade central, multiplicavam-se as racionalidades, as minorias étnicas, sexuais, religiosas, estéticas, transformando os domínios da história num espaço de dispersão.
Sob o império do presente e da linhagem historiográfica que lhe é tributária, Braudel mudou. Incorporou o cotidiano, realinhou o seu status, mas preservou a hegemonia da média duração. Uma refinada sensibilidade para o novo arranjo do mundo. Aquele no qual a globalização cria uma renovada homogeneização histórica, mas contempla o diverso preservando-o e dele extraindo o seu alimento. De novo, o pontual inscreve-se numa razão ecumênica que impõe o retorno da historicidade e do sentido da história, ensejando um novo império de Clio.

José Jobson de Andrade Arruda é professor titular de história moderna da USP, diretor da cátedra Jaime Cortesão do IEA-USP e autor de "O Brasil no Comércio Colonial" (Ática) e "Metrópoles & Colônias" (Ática).

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