São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A transformação da historiografia política

NEWTON BIGNOTO

Com a publicação do livro de Quentin Skinner, na cuidadosa tradução de Renato Janine Ribeiro e de Laura Teixeira Motta, o leitor brasileiro poderá tomar contato com um dos mais importantes livros de história do pensamento político dos últimos vinte anos. Editado pela primeira vez em 1978, o livro permanece atual, tanto para os que se dedicam profissionalmente ao estudo do período enfocado -do final da Idade Média até o fim do século 16-, quanto para o leitor simplesmente interessado em conhecer melhor as raízes de nossa modernidade política.
E é disso que trata essa longa história, que o editor brasileiro teve a boa idéia de reunir em um só volume com uma vasta bibliografia no final: de recontar, à luz da descoberta de novas fontes originais e de uma postura metodológica inovadora, o movimento de idéias que formou não só o moderno conceito de Estado, mas também deu forma a um republicanismo que ficara esquecido depois dos romanos. Skinner declara no prefácio que tem três principais objetivos: "oferecer um quadro panorâmico dos principais textos do pensamento político de fins da Idade Média e começos da era moderna", esclarecer a formação da idéia de Estado no período escolhido e aplicar um certo número de pressupostos metodológicos, que vinha aprimorando desde o final dos anos sessenta, na análise das fontes escolhidas. Podemos dizer que, de maneira geral, ele se sai admiravelmente bem na realização de seus três objetivos e daí resultam sua força e também suas eventuais fraquezas.
No que diz respeito a dar ao leitor um quadro panorâmico das idéias que contribuíram para a formação do pensamento político moderno, o autor oferece uma síntese que prima tanto pelo número de fontes usadas quanto pela coerência das análises. Partindo dos textos dos juristas de Bolonha, sobretudo Batolo, e dos manuais de retóricas (Ars Dictaminis) do final do século 13, ele chega até os textos revolucionários dos calvinistas com uma riqueza de detalhes e uma erudição difíceis de serem superadas. É verdade que o mérito dessas descobertas historiográficas raramente é de Skinner. No tocante, por exemplo, à retórica, ele nada mais faz do que ecoar um trabalho iniciado muitos anos antes por Ernst Kantorowicz. Da mesma forma, a longa descrição da gênese da idéia de liberdade é devedora tanto das descobertas de Eugênio Garin quanto das discussões de Hans Baron em torno da natureza cívica do humanismo italiano, que tanta polêmica provocou nos meios acadêmicos dos anos sessenta. De forma ainda mais radical, o escritor britânico é devedor confesso da obra de Pocock sobre o "Momento Maquiaveliano", que, de maneira convincente, mostrou a importância de vários autores renascentistas -sobretudo Maquiavel- na criação do pensamento político pós-medieval centrado na idéia de liberdade.
Sintetizando em grande medida a produção acadêmica dos últimos anos, Skinner não deixa de ser original em sua leitura das idéias políticas do período. Assim, contra a interpretação tradicional de Pierre Mesnard, em seu célebre "L'Essor de la Philosophie Politique au 16ème Siècle", que Skinner insiste (não sem alguma ironia) em elogiar, ele mostra que não basta analisar as principais obras de filosofia, para compreender a criação de uma nova época. É preciso descobrir as heranças profundas, o debate dos círculos literários e políticos, as leituras mais correntes entre os homens de letras e entre o público culto em geral, para reconstruir com precisão o movimento das idéias que, em íntima conexão com os grandes acontecimentos históricos, forja os novos espaços intelectuais, como conserva os fios de continuidade entre as épocas. É dessa maneira que o
historiador inglês produz um painel inovador da relação entre o humanismo italiano e o movimento da reforma, ao mesmo tempo em que insiste sobre os elementos de continuidade existentes entre o pensamento radical calvinista e o direito romano e a escolástica.
Ao descrever de forma tão minuciosa a construção do novo mundo do Renascimento, não se deixa de correr algum perigo. O primeiro é que o recurso a um número extraordinário de fontes acaba por apagar a fronteira entre as obras dos grandes pensadores e os textos menores de cada período. Mostrar com rigor as heranças medievais de Marsílio de Pádua, por exemplo, não aumenta necessariamente a compreensão de sua defesa do princípio da soberania popular; da mesma forma que o caráter revolucionário da obra de Maquiavel não diminui pela descoberta de seu relacionamento íntimo com o humanismo cívico.
O segundo risco diz respeito ao fato de que a riqueza de detalhes pode sugerir ao leitor que tanto a periodização quanto o eixo teórico da exposição guardam uma necessidade interna difíceis de serem abandonadas. Ora, é perfeitamente plausível, por exemplo -como fez J. Burns quando editou em 1991 "The Cambridge History of Political Thought 1450-1700"-, escolher um período ligeiramente diferente e com isso insistir na importância da continuidade de elementos do pensamento político cristão na formação da modernidade, mesmo sem estar em contradição com o retorno à Antiguidade. Aqui não se trata tanto de criticar Skinner por não ter feito de forma diferente o que quis fazer, mas de estar atento para as armadilhas da erudição que não pode por si só ocupar o lugar da reflexão e da filosofia.
Quanto ao terceiro objetivo, Skinner nos apresenta seu lado mais pessoal e ao mesmo tempo mais controverso. De fato, sua crítica aos procedimentos metodológicos tradicionais, elaborada em artigos nos anos setenta, encontra em seu livro um espaço privilegiado para se desenvolver. Ao insistir na importância da recuperação do contexto no qual foi escrito um livro, e isso não apenas no sentido da história dos acontecimentos políticos, mas, sobretudo, no que poderíamos chamar de contexto linguístico, como elemento essencial para o entendimento do significado das principais proposições de um texto, o historiador operou uma transformação radical na forma de se fazer história das idéias políticas e isso é largamente demonstrado na obra que estamos analisando.
No entanto, não podemos deixar de observar que, ao tentar voltar ao sentido original de um pensamento, ou, para dizer de outra forma, ao tentar mostrar qual era o significado de uma proposição na época em que foi proferida, nosso autor deixa de lado dois aspectos importantes da análise filosófica: abandona a história da recepção das obras como fio condutor privilegiado do leitor ao passado; e insiste de tal maneira em tentar "dar-nos uma história da teoria política de caráter genuinamente histórico", que não parece prestar atenção à dimensão propriamente reflexiva e filosófica da análise de textos do passado, como se o retorno a eles fosse incapaz de nos levar a pensar sobre nosso próprio tempo.
Resta, no entanto, que a obra de Skinner continua sendo uma dais mais ricas e instigantes histórias sobre a formação do universo de idéias políticas do Renascimento.

Texto Anterior: Dicionário banal e psicologista
Próximo Texto: O império da história
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.