São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Alfa, beta, gama: átomos da razão

LYGIA ARAUJO WATANABE

Eric Havelock coloca-se entre os primeiros historiadores da cultura grega que alertam para o caráter oral da composição escrita arcaica (1), estendendo-o do arcaísmo até o período clássico das letras gregas, desde seu belíssimo e inovador estudo sobre a obra de Platão como fenômeno literário (2).
De difícil rotulação, a obra de Havelock interfere na história da poesia, da filosofia, da... história, da dramaturgia, da teoria da comunicação, da cultura grega, com a clareza do pesquisador que também é um pensador original, quer dizer, que ultrapassa tais classificações de terreno. A reflexão histórica adquire, com ela, uma amplitude e uma profundidade maiores do que poderiam permitir os limites de cada um desses domínios. Lê-la significa exercitar-se com prazer numa história pluridisciplinar, polêmica e viva.
Das poucas alegrias que os estudiosos da cultura grega têm no âmbito das edições brasileiras, uma é, sem dúvida, a de ver traduzido para o português do Brasil esta coletânea de alguns de seus artigos publicados entre 1960 e 1980. Numa edição que não escapa a falhas, mas que merece menção por ter respeitado as notas e as bibliografias respectivas aos artigos, e até mesmo o índice remissivo -o que infelizmente não está em nossa praxe editorial! Uma tradução sem brilho, que consegue equilibrar-se, sem comprometer a extrema elegância do original em inglês.
Exceto por um senão, que passaria até desapercebido, não fosse ele a tradução do título da coletânea: o inglês "The Literate Revolution in Greece and Its Cultural Consequences", tornou-se "A Revolução da Escrita na Grécia e suas Consequências Culturais". É certo que a consulta de todo dicionário não deve se limitar a um purismo obediente nem dispensar a reflexão. No entanto, o dicionário deve conservar uma autoridade mínima. O "Webster's Dicionário Inglês-Português" (Ed. A. Houaiss, Record, 1982) indica, s. v. "literate": s. "letrado, literato, alfabetizado"; não há variante ou identificação com "written", escrito, ou "writing", o escrito, a escrita. Deste primeiro ponto de vista, já teria sido preferível então o título: "A Revolução das Letras" ou "A Revolução do Alfabeto". Como se trata do momento histórico da invenção do alfabeto grego, esta discordância não se limita aos termos.
Grosso modo, a identificação entre alfabeto e escrita pode ser plausível. Afinal, as letras, em sentido próprio e primeiro, são as letras escritas: "sinais gráficos", como diz o "Aurélio".
Por outro lado, os artigos de Havelock dedicam-se em geral à composição literária, incluindo nesta a filosofia, a história etc., e a especificidade de sua discussão vai muito mais além da simples localização histórica do nascimento da escrita: dedica-se também a ressaltar -enquanto uma "tese"- a separação entre o fato do surgimento dos registros por escrito, de um lado, e de outro, a formação gradual, paulatina, dessa poderosa estrutura lógica, que por ser a nossa, já sedimentada, tornou-se para nós quase imperceptível, e que é tornada possível a partir da maleabilidade do alfabeto grego.
Em l950, a história da cultura grega é abalada pela publicação do volume de Ventris e Chadwick, "Documents in Mycaenian Greek", pela Universidade de Cambridge, contendo o resultado das pesquisas que permitiram decifrar a escrita silábica denominada "Linear B", contida em tábulas encontradas no sítio arqueológico de Micenas. Pressupondo-se que a história seja história da escrita, isto é, que somente seja possível historiar aquilo que estiver documentado por escrito (a escrita sendo aqui o princípio, o meio e o fim da atividade do historiador), o deciframento do Linear B, para além do feito filológico, fez com que se recuasse o início de toda a história ocidental para o período anterior ao do século 13 a.C.
As consequências desse abalo ainda se fazem sentir. Pois, além da questão: afinal, quando é que começamos?, surge ainda esta outra: até que ponto somos prisioneiros dessa escrita -a ocidental, a alfabética-, que não apenas exercemos, mas que também é o dado que determina nossa história? Até que ponto escrevemos, até que ponto somos a escrita? Ou ainda: até que ponto aquilo que pensamos e como o pensamos é somente aquilo que o alfabeto nos permite? Por menos respostas que tenhamos para questões desse grau de generalidade, é certo que um caminho novo surgia, na esteira dos estudos de Milman Parry (3), desde 1928, e de Rhys Carpenter (4), desde 1933, que já conduziam, ambos, à necessidade de se encarar os inícios de toda produção literária grega como produção "letrada", mas ainda oral.
Para Havelock, desde Homero até Platão, continua vigorando uma configuração do mundo que, apesar da utilização das letras escritas, e dentro delas mesmas, ainda pertence ao mundo da oralidade: "A tese sustentada neste livro (...): o pressuposto de que o ouvido foi continuamente aliciado para colaborar com o olho, durante o período clássico, resultando num tipo singular de composição criativa, que o puro domínio da escrita não poderia nunca reproduzir" ("O Oral e o Escrito. Uma Reconsideração", pág. 21). Sobrevivência da oralidade no mundo letrado, atestada desde os cantos de Homero, que devem ser lidos como poemas orais que sofreram uma transcrição alfabética, e não como se tivessem sido "escritos". O escrito é inicialmente destinado a ser memorizado, a ser lido em voz alta etc. Somente em seguida é que se tornará essa técnica que permitirá o ensino do alfabeto desde a infância, abrindo portas à divulgação do saber, às traduções do saber estrangeiro, à publicidade e à democratização. Ainda assim, a composição letrada se constitui inicialmente numa "Hélade de ouvintes e não de leitores"("Os Pré-Socráticos e a Cultura Pré-Letrada", pág. 247).
Com o deciframento do Linear B e o consequente deslocamento do papel histórico da escrita, essa separação será acentuada: o silabário micênico já é mesmo uma escrita, mas tem uma conformação mais rígida, sendo mais adequado ao registro de catálogos e às listagens administrativas que compõem as famosas tábulas de Micenas. A verdadeira revolução não pode mais ser localizada na passagem da oralidade para o mundo escrito: passa a residir antes nas potencialidades inerentes às letras do alfabeto. Pois falta à escrita silábica o "atomismo" do alfabeto, a extrema fertilidade da combinatória de tais unidades ao mesmo tempo simples e complexas: alfa, beta, gama etc., palavras que não mais dizem outra coisa além delas mesmas... Para Havelock, são elas o princípio da construção das ciências e da filosofia modernas (cf. "As Consequências do Alfabeto", pág. 327). Os exemplos são muitos: "A fala iletrada favorecera o discurso descritivo da ação; a pós-letrada alterou o equilíbrio em favor da reflexão. A sintaxe do grego começou a adaptar-se a uma possibilidade crescente de enunciar proposições, em lugar de descrever eventos".("O Oral e o Escrito. Uma Reconsideração", pág. 16).
É evidente que com o advento da escrita alfabética uma revolução se instalara. Rhys Carpenter e Milman Parry nos advertiram que isto se faz aos poucos. Havelock acrescenta que somente após o período clássico a cultura helenística terá incorporado seus efeitos. Assim é que mais de 300 anos de cultura grega decorrem ainda sob a influência da oralidade. Após o que, diante dos textos helenísticos, diz Havelock, o leitor sente como que uma nostalgia dos textos de Homero, de Píndaro e de Platão, pois esse mesmo leitor terá seguido "a trilha de uma transição cultural do maior alcance, a passagem de um mundo ainda oralmente configurado, ouvido e compartilhado de forma comunitária, para o mundo lido em silêncio e a sós" ("O Oral e o Escrito...", pág. 18).
As teses de Havelock são elas próprias revolucionárias, polemizando com a visão histórica tradicional, e buscando suscitar a reação de possíveis contendores. Ao que parece, estes ainda não se apresentaram com força de persuasão à altura. Na historiografia moderna, como o atesta a tradução do título, ainda impera, inexplicavelmente, o olhar que privilegia a escrita.

NOTAS
1. Ver "The Greek Concept of Justice", Cambridge, Mass., 1938.
2. Ver "Preface to Plato", Cambridge, Mass., 1963).
3. Ver "The Collected Papers of Milman Parry", Oxford, 197l.
4. Ver "The Antiquity of the Greek Alphabet", in A. J. A., nº 37, l933.

Texto Anterior: Meditação em imagens
Próximo Texto: O violino de Einstein
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.