São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
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Desordem de Alain Platel rompe com soberba da dança moderna

ANA FRANCISCA PONZIO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O espetáculo "La Tristeza Complice", de Alain Platel, que inaugurou o Carlton Dance Festival na quarta-feira, inclui questões básicas lançadas pela dança moderna na segunda metade deste século.
Em meio à desordem que Platel promove no palco, inúmeras situações acontecem e, na condução das ações, o acaso é fator determinante. Retirando de Cunningham tal procedimento, Platel no entanto rejeita abstrações formais do mestre para criar um manifesto sobre a condição humana.
Dança? Teatro? Para Platel, as definições pouco importam. Juntando confluências e contradições, este autor que recusa o rótulo de coreógrafo, realiza um desconcertante cruzamento de linguagens.
Desmascarando o jogo social de aparências, revela o avesso de um mundo ordinário e grotesco. A vida real, sem superlativos, é o tema recorrente de Platel, feito das histórias pessoais de cada integrante de seu elenco heterogêneo, o Ballets C. de la B.
Mais do que um diretor cênico, Platel parece conduzir seu elenco como um psicoterapeuta que deixa aflorar defeitos e conflitos, sem interferir na expressão individual de cada intérprete.
Contudo, esta aparente despretensão tem função certa: tecer um comentário sobre a hipocrisia social, que despreza o que está fora do padrão beleza-sucesso.
Em "La Tristeza Complice", Platel situa a ação num ambiente público decadente. Acima dos andaimes onde está a orquestra de acordeonistas, a palavra cais aparece escrita num painel. Bancos enfileirados no canto direito sugerem salas de espera.
Por ali circulam personagens desajustados, como travesti, machão, crianças, imigrantes, um patinador contumaz. Incomodando o espectador à procura de climax ou tensões, o espetáculo transcorre como cenas comuns da vida cotidiana, com ações que se entrelaçam, se desprendem, sem chegar a finalidades ou objetivos.
Feita de gestos banais, mantidos em estado bruto, as sequências de danças desenvolvem um diálogo dissonante com a música, da qual emerge uma personagem simbólica -a cantora lírica de aparência contida que, vai se deixando contaminar pelo ambiente que a cerca.
Como Platel, o compositor belga Dick Van der Harst também desconstrói a música de Henry Purcell que, nos arranjos para acordeão, ganham tons nostálgicos.
Entretanto, em "La Tristeza Complice" há uma dispersão cênica que foi melhor controlada na peça anterior de Platel, "Bonjour Madame, comment allez-vous, il fait beau, il va sans doute pleuvoir", inspirada nas desigualdades sociais que ele viu pelas ruas do Brasil, em 1992.
Pouco digestiva, a obra de Platel rompe com as pretensas qualidades construídas pela dança neste século para tentar um novo recomeço -um degrau zero ainda não atingido, sobre o qual ele coloca suas incertezas.

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