São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
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Tragédia de Osasco aponta para omissão do Estado

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A tragédia no shopping de Osasco, como o caso das hemodiálises em Caruaru e o da clínica de idosos no Rio, parece apontar para um único problema: falta de fiscalização, omissão do Estado.
Um comentário desse tipo teria tudo para ser óbvio, mas não é. O Brasil vive sob uma intensa campanha antiestatal. Tudo o que vem do Estado e tudo o que é Estado se tornam automaticamente indesejáveis. A própria idéia de Estado parece anacrônica a crescentes setores de opinião.
Mas, se segundo alguns depoimentos havia cheiro de gás vazando há cerca de um mês no shopping de Osasco, onde estava a fiscalização? E onde estará a punição aos responsáveis pelo descaso?
É verdade que eu não acredito muito em punições. Primeiro, porque nenhuma punição repara a dor dos familiares de qualquer tragédia. Segundo, porque é muito difícil, na realidade, apurar quem foi o responsável.
Tudo se embrenha em particularidades técnicas e se perde na falta de provas. Como diz o preceito romano, em dúvida ninguém condenará alguém que pode ser inocente.
É justamente em casos complicados desse tipo que aparece a responsabilidade máxima, a responsabilidade em última instância, que é a do poder público. Como é que deixou o gás vazar, que água contaminada fosse servida aos velhinhos, que a hemodiálise fosse verdadeira máquina de morte?
Ocorre que a instância fiscalizadora, o Estado, encontra-se em desgraça. Como o Estado é ineficiente e corrupto, odeia-se o Estado, defende-se o seu virtual desaparecimento. Quando o Estado não age, não fiscaliza, pensa-se então que melhor seria se desaparecesse.
O raciocínio é semelhante ao dos campos de concentração nazistas. Os nazistas diziam que os judeus eram animais desprezíveis, sujos, promíscuos. Confinaram-nos primeiro em guetos insalubres e superpovoados, em seguida a campos de concentração onde qualquer impulso humano tornava-se quase impossível.
Depois de reduzirem os judeus a condições animais, desprezíveis, os nazistas acharam mais fácil dizer que a vida deles não tinha valor, e que era justamente aquilo que achavam que eles eram.
Claro que o Estado, por definição, tende a ser ineficiente e corrupto. Mas será que a empresa privada escapa desse risco? Muitas vezes sim: quando há concorrência aberta, uma padaria que vende pão com restos de barata será preterida pelos fregueses em favor de uma padaria que vende pão melhor, sem insetos etc.
O problema é que nem em todas as esferas vigora essa concorrência aberta. Não é tão fácil mudar um filho de escola, passar para outro plano de saúde, abandonar o posto de gasolina mais próximo, tirar a vovozinha da clínica, quanto comprar pão na padaria melhor que está a cem metros de distância.
A livre concorrência funciona, mas funciona melhor em alguns casos do que em outros. Aí é que entra, teoricamente, o Estado.
Na discussão brasileira sobre a função do poder público, tudo se confunde. Durante décadas, acreditou-se que a principal função do Estado era promover e planejar o desenvolvimento econômico. Havia racionalidade nisso.
Imagine-se, por exemplo, o empresário privado que pensa em fazer uma fábrica de sapatos em Limeira, sem saber que perto dali, em Franca, outro empresário começou também a fazer sapatos.
A sociedade ganha se os dois empresários se decidirem por um mesmo local; fica mais prático para todos, compradores, fornecedores, mão-de-obra, transportes.
O modelo concorrencial diria que apenas um desses empresários pode prosperar. E que o outro deve falir, em consequência da má escolha que fez ao sediar a empresa.
Mas o Estado "planejador", com toda sua ineficiência, poderia ter escolhido um lugar como centro de produção de sapatos. Escolhido bem ou mal, não importa, mas estaria economizando dores de cabeça ao empresário privado, minimizando custos privados e custos sociais como a falência da fábrica que foi parar em lugar errado.
Seja como for, o Estado brasileiro apostou todas as fichas na industrialização, no subsídio, no financiamento.
Até hoje sustenta bancarrotas privadas, por considerar, até com razão, que uma falência de banco (o Nacional) atinge o interesse público.
Só que o investimento estrangeiro, a aposta no setor de serviços (shopping centers, por exemplo) parecem diminuir o fator dinamizador que o Estado tinha quando isto aqui era uma roça sem limites.
A crítica ao Estado, no Brasil, entrou assim na onda privatizante internacional. Só que, quando Thatcher e congêneres fizeram a privatização, não estavam pensando em acabar com o Estado. O empresariado brasileiro gosta da idéia de acabar com o Estado.
Que, aliás, nunca existiu no que diz respeito à justiça social, educação para todos, aposentadoria etc. Fiscalização tampouco.
A fiscalização do Estado, na mente do empresário, é o único fator detestável a diminuir o poder que tem. Torna-se detestável porque a corrupção -gastos imprevistos- a vence; mais detestável ainda porque há funcionários públicos sérios, incorruptíveis -serão chamados de burocratas, xiitas, petistas. Mas, nos dois casos, é a ilusão de onipotência empresarial que se vê atingida, diante da realidade inoportuna do funcionário do Estado.
Daí um dos fatores do conflito entre mentalidade empresarial e Estado. Um governo sério pode ser privatista, neoliberal se quiser, mas não pode deixar de assumir esse conflito.
Infelizmente, não há moral para tanto entre os políticos. Desculpam a PM quando massacra os sem-terra de Eldorado, porque nesse caso a PM age a favor dos interesses privados. Culpam a fatalidade ou só agem na inocência cínica, nos casos de Caruaru, Osasco, da clínica Santa Genoveva; ocasiões em que falta Estado forte, com perdão do anacronismo ideológico desta terminologia.

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