São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996
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O caso do estupro

MARTA SUPLICY

A sociedade discute nessas últimas semanas o habeas corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal ao encanador Márcio Luiz de Carvalho, acusado de estupro da menor M.A.N., na época com 12 anos. Foram três votos a favor, dois contra e várias declarações infelizes do ministro Marco Aurélio.
A mais séria declaração (que fala das "moças de 12 anos") já teve consequência nefasta com a apresentação do projeto de lei do senador José Bonifácio (PPB/TO) propondo a redução da idade que indica "violência presumida" de 14 para 12 anos.
Todos sabemos que existem meninas de 12 anos com todo tipo de aparência e desenvolvimento emocional. Entretanto uma menina dessa idade, por mais corpo de mulher e comportamento sedutor que possa ter, não tem a estrutura psíquica desenvolvida para discernir a consequência de seus atos. Tanto que ninguém imaginaria hoje que uma menina de 12 anos possa dirigir automóvel, votar ou estar preparada para o casamento.
É correto, contudo, afirmar que hoje uma menina de 12 anos recebe inúmeras informações sobre sexualidade, infelizmente sem o necessário esclarecimento das suas implicações. Elas ouvem de tudo e são estimuladas pelos programas infantis a usar roupas inadequadas à idade, sem compreensão do que tais vestimentas estimulam. Na TV, todos transam, ninguém engravida e não se fala de anticoncepção ou do risco do HIV.
Ao contrário do que diz o ministro Marco Aurélio, essas meninas estimuladas para a sexualidade não encontram, senão raramente, possibilidade de conversa sobre o tema com os pais nem orientação sexual nas escolas. São, na verdade, vítimas de uma sociedade que não consegue controlar os horários de sua programação televisiva nem educar para uma sexualidade prazerosa e responsável.
Transformá-las em rés, dizendo que são "moças", é legislar com uma visão superficial sobre desenvolvimento e comportamento de adolescentes.
Dia 25 último, no Congresso de Sexologia da Universidade Gama Filho, perguntei aos cem especialistas e alguns renomados professores da área o que pensavam sobre o amadurecimento sexual da adolescente de 12 anos no mundo de hoje. Houve unanimidade a respeito do erro de imputar o mesmo amadurecimento a meninas de 12 e 14 anos, desde a não-flexibilidade da vagina de uma pré-púbere para uma relação sexual até o "pseudo" amadurecimento psicológico.
Eu diria mais, a partir da experiência de tratar vítimas de incesto ou abuso sexual na infância; mesmo que a relação se dê com a aquiescência da criança, na idade adulta ocorre uma ressignificação da experiência sexual e são inevitáveis a sensação de exploração, vergonha, medo de relacionamento com o sexo oposto e rebaixamento de auto-estima.
Podemos, contudo, ressaltar o aspecto positivo que a discussão traz, mostrando quão urgente é a necessidade de revisão do Código Penal, datado de 1940. No caso de estupro, a lei é exata e nada fora dela pode ser ajustado. Os ministros do STF se viram diante da condenação de um jovem à reclusão por seis anos ou o habeas corpus. Resolveram, numa decisão difícil, em vista de a pena de estupro presumir violência -o que, para eles, nesse caso não ocorreu-, ignorar a "violência presumida".
O ministro Rezek coloca em seu parecer: "Falta em nossa lei penal uma figura mais flexível e abrangente, que enquadre condutas reprováveis como o assédio sexual (sobretudo no ambiente de trabalho) e as várias formas de abuso resultante da falta de escrúpulos, como o envolvimento consentido com menor de 14 anos; condutas que não têm, contudo, a gravidade do estupro nem se ajustam ao molde legal da sedução e da corrupção do menor".
Nos últimos 20 anos, tem sido intensa a luta dos movimentos de mulheres e juristas pela atualização do Código Penal.
Como parlamentar, estou empenhada na luta pela revisão imediata do texto referente aos crimes contra a liberdade sexual. Isso é fundamental, tal como retirar de todo o Código a figura da "mulher honesta", repensar tipificações e punições (para que se possam aplicar penas "alternativas" e adequadas à diversidade dos casos) e inclusão do crime de assédio sexual.
Por enquanto, ficamos sob o impacto das consequências da decisão do Supremo Tribunal Federal.

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