São Paulo, domingo, 16 de junho de 1996
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Um elaborado caleidoscópio de alusões

SERGIO PAULO ROUANET
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PRAGA

Há afinidades eletivas entre cidades e escritores. Mas nem sempre essas afinidades são categóricas. Temos o direito de hesitar antes de dizer se Londres é mais a cidade elizabethana em que Shakespeare dirigiu o Globe Theatre ou a cidade do século 19 em que passeiam até hoje os personagens de Dickens. Não sabemos se Paris está mais ligada a Balzac, que a recriou em toda a sua poderosa realidade, ou a Aragon, que decifrou nela o seu substrato surrealista.
A mesma dúvida não existe no caso de Praga. Ela está, sem contestação possível, marcada pela presença de Kafka. É kafkiano mesmo o que muito anterior a Kafka, pois o próprio olhar com que vemos a cidade é um olhar kafkiano. E o olhar kafkiano tem o dom da metamorfose, operação kafkiana por excelência. Sob esse olhar, o Hradchin, acrópole medieval que domina a cidade, se transforma no Castelo de Kafka, o Tribunal de Justiça se transforma no prédio em que se realizou o processo de Kafka, a ponte de Carlos 4º se transforma na passagem em que transitamos entre duas irrealidades, a do mundo objetivo e a do mundo de Kafka, e até os turistas alemães se transformam em personagens de Kafka.
Deve ser por causa disso que pensei, assim que cheguei a Praga, no mais kafkiano dos romances brasileiros recentes: "Bartolomeu", de Leandro Konder.
A história de Bartolomeu é contada por seu irmão de criação, que odeia o monstrinho, a uma jornalista, que o idealiza como herói revolucionário. O resultado desse depoimento é o livro -a história dos feitos memoráveis do maior anão do mundo. Bartolomeu é trazido para casa pelo pai do narrador, Nicolau, que explica ter encontrado o bebê numa lata de lixo, guiado por uma visão.
A criança é aceita por d. Josefa, mãe do narrador, e incorporada à família. É um ser disforme, não somente de baixa estatura como com a cabeça enorme e com braços e pernas curtos demais com relação ao corpo. Logo Bartolomeu revela dons de telepata e de vidente. Sabe, antes de qualquer aviso, que seu pai e avô adotivo tinham morrido. Um dia salva a vida do narrador, atrasando sua chegada num restaurante em que o anão tinha adivinhado que acontecia um assalto. Prevê o drama que resulta na morte da mãe do narrador e de um vizinho, vitimados pelo ciúme do segundo marido de d. Josefa. Um dia o narrador está gravemente doente num hospital, recebe de madrugada, inexplicavelmente, a visita de Bartolomeu, que ninguém vê entrar nem sair, e no dia seguinte o enfermo estava curado.
Nada disso impede o narrador de odiar Bartolomeu. Seus caminhos se separam. O narrador se transforma num filólogo eminente, viaja, participa de congressos científicos. Regressando ao país natal, fica noivo da filha de um banqueiro. Por insistência dela, vai visitar Bartolomeu, que vivia numa favela em companhia de um ex-padre e que segundo a população local fazia milagres. O narrador se casa. Sua mulher enlouquece e é recolhida a um asilo psiquiátrico. Ele faz sucesso na política.
Enquanto isso, Bartolomeu vai se tornando conhecido como profeta, fundador da seita dos Justos, e como líder guerrilheiro, pois os Justos em caso de necessidade não hesitam em recorrer à luta armada. Por insistência do seu amigo Pantaleão, oficial ligado aos serviços de inteligência, o narrador procura Bartolomeu, para obter informações sobre seus projetos revolucionários. Um dia sabe por Pantaleão que ele seria vítima de um atentado por parte de grupos paramilitares e tenta avisá-lo, sem êxito. Bartolomeu é morto por um bando de homens mascarados. Os Justos são dizimados pela repressão. O narrador termina seu depoimento, zomba das idéias avançadas da jornalista, despede-se da moça e fica tomando sal de fruta, para curar-se de uma ressaca.
Quem é Bartolomeu? Certamente um ser extraordinário, enviado ao mundo para salvar os homens. Ele nasceu como nascem os redentores, anunciado por uma aparição luminosa. Como os outros profetas, seus êmulos, Bartolomeu foi abandonado ao nascer e salvo por uma intervenção humana. Assim foi com Moisés, segundo lembrou Antonio Callado, e assim foi com Édipo, Krishna, Rômulo.
Como nos outros exemplos, a questão da paternidade é incerta -Bartolomeu seria filho de seu Nicolau, pai do narrador, barnabé e pau-d'água, ou de uma figura mais excelsa? Como seus predecessores, Bartolomeu faz coisas sobrenaturais, vendo o futuro e operando milagres. Atingida a maioridade, age como agem os profetas, prega a seus discípulos a palavra de Deus, luta contra a injustiça e é sacrificado pelos poderosos. Mas, se Bartolomeu é um Messias -digamos, Cristo como alegoria do revolucionário-, quem seria o Evangelista? A jornalista que transcreve o depoimento? O irmão de criação de Bartolomeu, filólogo ilustre e político conservador? Ou Leandro Konder, filósofo igualmente ilustre e militante socialista?
A hipótese do livro como uma espécie de evangelho segundo Konder é atraente, mas nessa caso Leandro seria um evangelista espantosamente complicado, que se exprime por intermédio de um narrador cujas idéias ele não partilha, num depoimento publicado por alguém que por sua vez detesta as opiniões do narrador.
No entanto, esse fino leitor de Kafka (de novo!) não recua diante da complexidade. Ela talvez seja mesmo necessária, para alguém que como Leandro quer exprimir as perplexidades do nosso tempo, sem simplificar nada e tentando compreender todos os pontos de vista. Para isso, um só narrador não basta. Consequentemente, bem feitas as contas, há três narradores. Há o narrador ostensivo, o irmão de criação de Bartolomeu. Há a jornalista, que escreve um texto que pode ou não traduzir com fidelidade as palavras do entrevistado, já que o leitor fica sem saber se ela afinal usou ou não um gravador. E há o próprio Leandro, que não aparece explicitamente, mas constrói para si mesmo uma espécie de auto-retrato irônico, que inclui entre seus elementos traços dos outros dois narradores.
Os três níveis narrativos permitem a Leandro identificar-se e desidentificar-se com as diferentes posições que se alternam no livro. Ele simpatiza com a moça de esquerda, mas desconfia de sua tentativa de fazer de Bartolomeu um santo revolucionário e por isso se distancia dela. Talvez concorde, hoje em dia, pelo menos em parte, com as opções vagamente social-democráticas do irmão de criação de Bartolomeu, mas despreza seu oportunismo e por isso também se distancia dele. Ele se distancia, finalmente, de si próprio, o terceiro narrador, e a prova é que em vez de se autodesnudar na forma exaltada da confissão, como Santo Agostinho e Rousseau, compõe um pastiche do professor Leandro Konder, fazendo questão de aparecer mais como um diletante da cultura universal que como o grande pensador marxista que ele sempre foi.
É por isso que Bartolomeu é "unheimlich", no sentido psicanalítico, estranho e familiar ao mesmo tempo. Ele nos é estranho, porque nem todos somos anões e profetas. Mas é familiar, porque a crise que ele simboliza é a nossa crise, e como seu pai intelectual, Leandro, não podemos nem aderir aos velhos dogmas nem sobreviver num mundo sem certezas. Sabemos que a salvação não é deste mundo, mas não podemos renunciar à esperança. São reflexões apropriadas para esta cidade kafkiana onde nasceu outro monstrengo, o Golem, que também quis um dia rebelar-se contra o rabino que o explorava, mas que acabou se desfazendo num monte de barro, na velha sinagoga de Praga.

Sérgio Paulo Rouanet é filósofo e embaixador de carreira, autor de "As Razões do Iluminismo", entre outros; foi ministro da Cultura e atualmente exerce o cargo de cônsul-geral do Brasil em Praga.

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