São Paulo, quarta-feira, 19 de junho de 1996
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Política da individualidade leva à ressurreição

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O doutor Pereira é bem gordo, sofre do coração, gosta de tomar limonadas entupidas de açúcar e está sempre comendo omeletes. Bom católico, tem dúvidas sobre um ponto da doutrina: a ressurreição da carne.
Que a alma sobreviva, está certo. Mas que o corpo, no dia do Juízo, ressuscite -bem, o doutor Pereira não está muito convencido disso.
O doutor Pereira é viúvo, solitário, cortês. Trabalha como cronista cultural num pequeno diário lisboeta. O ano é 1938, o filme se chama "Páginas da Revolução", o doutor Pereira é Marcello Mastroianni.
"Páginas da Revolução" é o título meio bobo que encontraram para o original italiano -"Sostiene Pereira".
O filme, de Roberto Faenza, segue com fidelidade um romance de Antonio Tabucchi, recém-traduzido no Brasil com o título de "Afirma Pereira" (ed. Rocco).
O que há de interessante na história desse doutor Pereira?
Trata-se de um personagem bastante medíocre. Vive uma vidinha de viúvo e sua tarefa no jornal consiste basicamente em traduzir contos de autores franceses para a página de cultura. À noite, doutor Pereira conversa com o retrato da finada mulher.
"Páginas da Revolução" é mais um daqueles filmes políticos italianos, onde se narra o caminho de um homem comum, respeitável, direito, no rumo do engajamento e da luta social.
Teria tudo -e tem- para ser um filme edificante, mobilizador. Mas é mais do que isso, dada sua sutileza psicológica, seu intimismo no trato com o personagem.
Portugal, em 1938, vivia sob plena ditadura salazarista. A polícia política matava os dissidentes. Militantes portugueses lutavam ao lado de Franco na Guerra Civil Espanhola. Crianças de uniforme faziam desfiles. O doutor Pereira não era nenhum herói. Não acompanhava de perto os conflitos de seu tempo.
Ocorre que ele se deixa envolver por um tal de Francisco Monteiro Rossi, rapaz que contrata para escrever no jornal. Pouco a pouco, sem saber o porquê, Pereira começa a ajudar Monteiro Rossi -e este, com sua namorada, está enterrado até o pescoço na resistência antifascista.
Pouco a pouco, Pereira se compromete com a política. O interessante da história está no fato de que ele se compromete, não por meio de uma conversão ideológica e construtiva, mas por obra de sua própria passividade, de sua própria indiferença.
Monteiro Rossi, no filme, é um homem de extrema beleza e alegria. Pereira não resiste; ajuda-o. Imagina que Rossi poderia ter sido o filho que não teve. Um misto de fascínio sexual, de inveja, de aspiração à juventude dirige as ações de Pereira.
Passivamente, Pereira se compromete cada vez mais com a causa antifascista. Não vou contar o filme inteiro. Faço apenas alguns comentários.
No final da história, vemos um Pereira ao mesmo tempo diferente e parecido com o que nos fora apresentado de início.
Ele se joga numa ação arriscadíssima, corajosa, inconformista. Não posso dizer qual.
Mas posso dizer o seguinte: o ato corajoso de Pereira era evidentemente incapaz de mudar o curso da história. Pereira não poderia derrubar o regime autoritário. Seu ato é romântico, individual. Fez o que tinha de fazer, sabendo que nisso nada haveria de decisivo historicamente.
Proezas como as de Pereira são sabidamente inúteis para a sociedade; no máximo, ajudam microscopicamente a causa democrática. Surgem do nada, são puros sacrifícios pessoais, não têm, a rigor, sentido nenhum.
Há coisa mais irracional do que aquelas pessoas que se deixam queimar vivas pela libertação do Tibete ou da Tchechênia? Qual a justificação para protestos suicidas, para tantas pessoas que morreram, deixando filhos à míngua, pela "vitória do povo"?
Pode não haver justificativa racional, mas há sentido nisso tudo. Cada um desses fanáticos (mas Pereira não é fanático) morre, digamos, à toa, em nome de bandeiras que o tempo se encarregará de desbotar. Pouco importa se em cada morte dessas ou em cada ato de heroísmo foi dado um sentido à vida.
Pereira tinha medo da morte, tinha medo da vida, tinha medo de tudo. Venceu o próprio medo -e, nesse sentido, catolicamente, viu a própria alma ganhar força, numa ressurreição moral, e rejuvenesce o próprio corpo com isso.
Atos gratuitos, portanto, estão em jogo neste filme. Gratuitos para o curso da história, mas nada gratuitos para o indivíduo, que cresce como homem no sem-sentido do que faz.
Há uma bela página de Bergson em defesa do livre-arbítrio, onde ele diz que, por vezes, os atos que fazemos sem nenhuma justificação, os atos que fazemos sem saber por que os fizemos, são na verdade os mais livres.
Obedecemos, claro, às nossas circunstâncias, às nossas superstições, à nossa educação, ao nosso caráter. Mas, diz Bergson, "nosso caráter é ainda nós mesmos".
Todas as determinações externas valem pouco, por mais que nos influenciem, uma vez que somos nós, livremente, que as expressamos num gesto, numa ação; e tudo o que há de externo, de alheio, de influência longínqua, compõe certamente nossa alma.
Mas só tomamos posse de nossa alma quando a expressamos, diz Bergson, assim como um artista se expressa na obra que faz.
Entender cada ato individual como uma obra de artista, cada proeza particular como necessidade indesviável e como afirmação de liberdade pessoal: eis o que nos ensina a história de Pereira.
Estamos muito longe da política, mas muito perto dela também. O ato político como expressão da própria personalidade, e não como militância e disciplina, é sem dúvida o ato político por excelência. Ainda mais numa época em que o papel do sujeito, a ilusão da primeira pessoa, a força do subjetivismo parecem estar em decadência.
O doutor Pereira, com suas fraquezas, limonadas e omeletes, ensina isso.

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