São Paulo, quinta-feira, 20 de junho de 1996
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Dor emprestada

SUZANA SINGER

Decidi na quarta-feira passada ir a Osasco. Fazia tempo, anos talvez, que eu não participava da cobertura de uma tragédia, um "fato quente", no jargão jornalístico.
Fui direto ao velório coletivo, organizado em um ginásio. Logo na entrada, funcionários organizavam os visitantes em filas e pediam pressa. Já era quase meio-dia e os enterros estavam marcados para as 13h.
A imagem dos nove caixões espalhados naquela quadra de esportes azul brilhante provocava um choque em quem chegava. Os parentes formavam círculos ao redor dos corpos; os demais se sentavam nas arquibancadas, lugar habitual de torcedores.
Enferrujada e hesitante, achei que me sentiria intrusa naquele lugar, uma observadora fria da dor alheia.
A minha primeira surpresa foi essa: entre tantos curiosos, não havia espaço para constrangimentos.
Sem nenhum álibi profissional, a maioria estava ali apenas para olhar. Não eram parentes, nem amigos, mas estavam emocionados. Viam os outros chorarem e choravam também. Houve até momentos de histeria, com adolescentes gritando e mulheres desmaiadas sendo carregadas.
Os dois enterros que assisti também estavam lotados. Gente que conhecia os mortos "de vista" escalava túmulos, em busca de um lugar melhor para espiar, e empurrava os familiares no limite de sufocá-los.
No dia seguinte, a mídia chamou aquilo de solidariedade e louvou a capacidade "brasileira" de "ajudar o próximo".
A Folha falou também em curiosidade, em gente que foi ao IML ver corpos esmagados. Não foi esse o caso daqueles milhares de visitantes no velório. Não eram pervertidos, sujeitos padecendo de curiosidade mórbida. Pareciam pessoas comuns -se é que existe isso-, tentando espanar um pouco da boçalidade da vida.
Como todos os telespectadores que incharam as audiências dos jornais naquele dia, esses "visitantes" eram chupins de emoções. Estavam lá para sentir, nem que fosse por osmose, dor, revolta, tristeza.
Impossível não lembrar dos Mamonas Assassinas. Até então não tinha conseguido entender tamanha comoção por causa de um grupo que se orgulhava de rimar "suruba" com "mão na bunda".
Nos dois casos, o importante era fugir do cotidiano comezinho e participar de um fato maior, de certa forma histórico. Integrar um ritual, nem que fosse funerário.
Como todo repórter, fui a Osasco em busca do insólito. Procurava heróis e relatos detalhados de vítimas. Encontrei o inesperado na massa de anônimos sequiosa de sentido para a vida.

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