São Paulo, quinta-feira, 20 de junho de 1996
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"Denuncismo" ou defesa dos cidadãos?

ROBERTO ROMANO

Os acadêmicos produzem saberes ou propagandas. Einstein e Goebbels nutriram seus pensamentos nos campi. Nas bibliotecas e nos laboratórios, nenhuma divindade justifica teoremas ou experimentos. Ali, o entusiasta -o que possui um deus na barriga- é visto como energúmeno.
A força ética dos intelectuais reside na razão, na autoridade científica e tecnológica. Mas tal assertiva serve apenas para o todo acadêmico. Ela perde valor quando se trata de indivíduos. Duas coisas mostram a fome de poder que domina certos universitários. Quando um novo governo se instala, eles correm em busca das assessorias e provam que o instrumento mais flexível do mundo é a espinha dos ideólogos.
Assim ocorreu na era Collor e no atual governo. Oferecido um cargo, muitos economistas, sociólogos, filósofos e quejandos pisoteiam valores para agradar os donos do "Diário Oficial". Dizia um filósofo que a realidade compreende modelos, cópias, simulacros. No Brasil, a ditadura é o modelo ideal, assumido pelos presidentes. As cópias encontram-se entre os governadores. Os simulacros são apanágio dos acadêmicos que frequentam pela vez primeira os vestíbulos do Planalto.
A Folha publicou, tempos atrás, com liberalidade inédita na imprensa brasileira, a verrina de um filósofo que proferiu, contra ela, impropérios sem diálogo racional. Vilipendiando o veículo que sempre o acolheu, J.A. Giannotti copiou o seu chefe, repetindo um slogan digno de "Monsieur le President" Papa Doc (um intelectual haitiano): "Nós estamos no poder, acabou a necessidade da crítica".
Em 12 de junho último, a mesma Folha, em "Tendências/Debates", exibiu um simulacro discursivo. Nele, J.A. Moisés, situado em escala mais baixa na hierarquia palaciana, ataca o jornal acusando-o de prática mercantil, irresponsabilidade, "denuncismo".
Das bazófias expostas por Moisés, nauseante é a "tese" de que a denúncia de irregularidades administrativas, pela imprensa, conduz ao golpe de Estado. O simulacro piorou o "argumento" exposto pelo chefe sociólogo. Este proibiu a crítica: "Ser contra o governo é trair o Brasil". Velha cantilena do regime castrense e de todas as ditaduras.
Moisés chantageia a imprensa e a cidadania: "Se não curvarem a cerviz, haverá um golpe". Foi assim que os burocratas do antigo comunismo exigiram total adesão ao pacto entre a Alemanha nazista e a URSS, em 1939. A "santa aliança" matou milhões para garantir os ditadores e os intelectuais que a serviram. Cérebros formados no autoritarismo, de esquerda ou direita, sempre odeiam o pensamento autônomo.
É meridiano o raciocínio dos censores que um dia foram intelectuais: a universidade crítica e a imprensa livre só devem existir enquanto os iluminados, que engoliram o absoluto divino, não chegaram ao poder. Presos às sinecuras (convescotes em Paris etc) e tendo as orelhas lambidas pela adulação, senhores e simulacros julgam urgente, como disse a primeira-dama, "educar os jornalistas", que odeiam, votando horror idêntico aos seus antigos pares acadêmicos que resistem na sociedade civil.
É cinismo apontar a imprensa como causadora de golpes quando se trabalha para um governo que pratica o "é dando que se recebe" com parlamentares e depois os aponta como fonte de ingovernabilidade. É ridículo ouvir um assessor direto do ministério cultural que discorre -o rosto coberto pelo óleo de peroba- sobre "aprendizado" técnico (em três dias) na administração de bibliotecas e arquivos franceses.
Assumiu ele o governo para iniciar o noviciado das instituições culturais? Isso já não deveria ter sido feito nas universidades? Ou seu tempo nos campi foi empregado em outras matérias, como a corrida às assessorias? Sabe J.A. Moisés que o governo por ele servido desmantelou a Secretaria da Cultura paulista e, ainda ontem, trancou as portas de nosso Arquivo Histórico? A TV Cultura é ameaçada todos os dias. Nem o cursinho rápido em Paris resolve essa miopia. Não fosse a Unesp, apontada pelo mesmo governo como inimiga número um, o Arquivo Histórico não teria sobrevida.
O "denuncismo" da Folha, a que se refere o assessor governamental, traz aos cidadãos os bastidores das alianças entre oligarcas. Ele desmascara o diletantismo de universitários que deveriam saber, desde os tempos de seu mestrado, como operam instituições que administram a pesquisa e as artes. Se as palavras da imprensa sobre os atos do poder fossem apagadas, e só restassem as fotos que os ilustram, mesmo assim os dominados aquilatariam o teor das "uniões táticas" cantadas pelos apologetas do governo.
Toda pessoa honesta, até o fim dos tempos, terá nojo das saudações entre Stálin e Ribbentrop. E o simulacro? Quem lutou contra a ditadura militar enrubesce diante do "mérito cultural" outorgado pelo ministro da Cultura ao dono da Bahia. Este último não mudou: continua senhor do Nordeste, príncipe das oligarquias que desgraçam a Federação brasileira. Mudaram os que, até às vésperas da eleição de FHC, consideravam todos os outros políticos "farinha do mesmo saco". Alguém referiu-se aos ex-petistas, hoje no poder, como "a UDN de esquerda". Eles aderiram à UDN. Sem mais.

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