São Paulo, domingo, 23 de junho de 1996
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A viúva Margot e o monstro

ROBERTO CAMPOS

Nietzche tinha razão. O Estado é o mais frio dos monstros. Aos 82 anos, a viúva Margot sabe disso. Ela pertence à grande confraria das vítimas do Estado caloteiro, só inferior em número e abrangência à "Confraria dos Extorquidos", espetados por fiscais corruptos. (Um grande argumento em favor do Imposto Único sobre Transações Financeiras, cobrado eletronicamente pelos bancos, em substituição aos tradicionais impostos declaratórios de renda e consumo, é precisamente a extinção dessa espécie parasitária...).
A estória da viúva Margot começa em 1957. Seu marido, proprietário da firma Robaina e Companhia Ltda., de Santa Catarina, conseguiu furar o cartel dos importadores de trigo, que, por critérios arbitrários, eram sempre os aquinhoados com as licenças de importação da Cexim (Carteira de Exportação e Importação do BB). A Robaina acabou, após porfia, obtendo uma licença e contratou compras de trigo no Uruguai. Antes de concretizada a importação, foi modificado o regime de taxas múltiplas de câmbio e abruptamente canceladas as guias de importação. Para garantir seu direito de importar, a Robaina impetrou um mandato de segurança. Concedido este pela Justiça, o governo se viu constrangido a emitir as licenças respectivas. Só que a Robaina ganhou, mas não levou. O astuto ministro da Fazenda de então, o mineiro Alckmin, de quem se dizia ser capaz de trocar de meia sem descalçar os sapatos, extrapolou sua criatividade burocrática ao exigir, para a liberação das guias, uma "taxa de expediente" correspondente a 100% do valor das mesmas. Premido pelos vendedores uruguaios, e pelos compromissos de entrega, a Robaina depositou, sob protesto, a taxa ilegalmente requerida, efetivando a importação.
Começa aí uma longa batalha judicial, que duraria décadas, cujos capítulos principais são os seguintes:
1960 - A Robaina dá entrada na Justiça a uma ação ordinária de "Repetição do Indébito", com o fito de recuperar os valores exorbitantes da taxa de expediente.
1963 - Morre o marido de Margot. A empresa deixa de operar, mas não é liquidada, mantendo como seu único ativo os créditos contra o Tesouro.
1976 - O Judiciário reconhece o direito da Robaina a uma reparação, tendo o caso atravessado várias instâncias da Justiça, até o Supremo Tribunal Federal. Inicia-se a "Fase de execução". Ocorreu subsequentemente, uma longa disputa sobre a aplicabilidade ou não da correção monetária sobre os valores depositados a título de taxa de expediente, para o cálculo do valor da reparação. O processo vai novamente ao Supremo Tribunal, sendo fixada a correção monetária, acrescida de juros de 12% ao ano, a partir de 1957.
1991 - Começam a ser expedidos os precatórios judiciais contra o Tesouro. Tinham-se passado 15 anos após o início da fase de execução e 31 anos após o início do processo judicial. É o espaço de uma geração. A viúva Margot teve sua vida estragada, passando de robusta balzaqueana a uma velhinha aflita...
O precatório judicial é uma obrigação de pagamento do governo. Mas "entre el decho y el hecho hay un gran trecho", como dizem os espanhóis. O governo é severo como credor e debochado como devedor. Os particulares que lhe devem impostos são inscritos no Cadin, uma espécie de lista negra que os impede de transacionar com qualquer recurso ou agência governamental. Mas o governo, mau pagador, dá-se ao luxo de rejeitar total ou parcialmente seus próprios títulos nos leilões de privatização, como "moeda podre". Essa expressão, rotineiramente usada pelo BNDES, demonstra até que ponto estamos impregnados pela cultura do calote. E, no caso de sentenças judiciais, o governo têm o recurso dos "precatórios". Basta-lhe inserir no orçamento, até 30 de junho, os créditos correspondentes, para pagamento ao longo do exercício seguinte. Habitualmente, decorrem 18 meses entre a inscrição do débito e o efetivo pagamento, a menos que o credor tenha um forte pistolão. É fácil de ver que o credor sofre um confisco proporcional ao grau de inflação. A parcela não recebida do crédito (diferença entre o valor real e o recebido em moeda desvalorizada) pode ser objeto de um novo precatório, sujeito ao mesmo ritual dilatório. Calcula-se que, com uma inflação de 25% ao mês, que experimentamos durante algum tempo, o valor de um precatório emitido em julho, se pago em 31 de dezembro do ano seguinte, só poderia ser recomposto através de 212 precatórios e o processo duraria 318 anos. É que normalmente o credor não consegue se habilitar em dois exercícios subsequentes, mas apenas de dois em dois anos, em exercícios orçamentários alternados. Essa diluição de pagamentos, se não corrigida, perpetuará a irresponsabilidade da gastança pública.
A relativa estabilidade trazida pelo Plano Real dificultou o tradicional calote inflacionário e desnudou impudicamente a insolvência dos governos. Hoje, nada menos que sete governadores estaduais (além do governador do Distrito Federal) são objeto de pedidos de intervenção, pelo descumprimento de precatórios judiciais. São Paulo é o caso mais agudo, com dívidas judiciais da ordem de R$ 4,5 bilhões. Dentro em breve, os governadores terão de sair pela porta dos fundos, para escapar aos oficiais de justiça.
Em 1995, tendo chegado aos 82 anos, cansada de esperar, e precisando de melhorar suas condições de habitação, Margot vendeu por uma fração pequeníssima de seu valor, o maior dos dois precatórios de que era titular. Quanto ao outro precatório (o menor dos dois), não é certo que venha a recebê-lo no tempo que lhe foi concedido sobre a Terra. Terá o consolo de recebê-lo em Reais, que por enquanto não é moeda podre. Ninguém lhe trará de volta, certamente, o gozo da juventude perdida...
O bem que o Estado pode fazer é limitado; o mal, infinito. O que ele nos pode dar é sempre menos do que nos pode tirar. Mesmo instituições aparentemente benignas como a Previdência Social, acabam tornando-se cruéis. Sendo as contribuições entregues compulsoriamente ao Estado, perde o cidadão o direito democrático de escolher a quem confiar a administração de sua poupança. Passa a ser súdito em vez de cidadão. E o administrador perdulário, que abiscoita as contribuições, criou um sistema em que metade dos gastos vão para a classe média e a burocracia (que representam 10% dos segurados) pouco restando para a aposentadoria dos 90% mais pobres. Nossa Previdência Social é exemplo de imprevidência anti-social. Na minha visão liberal, o Estado benfeitor é um disfarçado predador, lobo vestido de cordeiro, mais para sicário que para samaritano.
P.S. Segundo informação, Dna. Margot está muito grata ao comprador dos precatórios!...

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