São Paulo, domingo, 23 de junho de 1996
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FHC e o cheiro de povo

LUÍS NASSIF

Não deixa de ser curiosa a personalidade do presidente da República. Tem passado intelectual comprometido com questões sociais, uma mulher que é reserva moral e, no poder, tem-se esmerado em tentar desenvolver políticas sociais não-fisiológicas.
Sua política econômica tem gerado desemprego em proporções graves, e quebradeira em proporções jamais vistas.
Mesmo assim, não se pode acusá-lo de buscar deliberadamente a concentração de renda.
Venderam-lhe o peixe de que o processo de estabilização da economia brasileira passava por taxas de juros assassinas, dentro da sem-cerimônia com que economistas costumam tratar países.
E, na ampla literatura política da qual se abeberou ao longo de sua trajetória intelectual, aprendeu que o verdadeiro estadista não pode vacilar em impor sacrifícios ao país. Mesmo que não haja lógica no sacrifício imposto.
Recessão
Mas, por trás de seu projeto político, está a ambição maior de construir uma nação moderna e a solução da questão social é parte intrínseca desse projeto. Pode-se discordar do caminho percorrido, mas tem sua lógica.
Então, por que tão disseminada a imagem de um presidente insensível, sem preocupações sociais?
Por que o presidente que, depois de JK, teria mais condições de costurar um amplo pacto político, fica isolado em Brasília, despertando em antigos amigos e aliados ódios que nem Sarney foi capaz de despertar?
Conselhos
Na raiz desses conflitos reside um claro erro de estratégia. No primeiro mês de governo, o governador paulista Mário Covas deu o conselho correto ao presidente: apresente todas as reformas importantes de uma vez, que o Congresso aprova.
Em início de governo, o Congresso aprova até bloqueio de cruzados como ensina a experiência Collor.
Em vez de perseguir o grande acordo nacional, FHC decidiu-se pelo caminho fechado. Aliou-se a partidos conservadores, com larga tradição fisiológica, pensando valer-se dos instrumentos da fisiologia para cortar as nove cabeças da Hidra.
Apresentadas na largada do governo, as propostas de reformas econômicas passaram. As que vieram atrás emperraram.
Imortalidade
Gradativamente, o presidente passou a se distanciar dos segmentos formadores de opinião (pelas pesquisas de opinião, é temerário anunciar que se afastou da média do eleitorado).
O erro de estratégia do presidente foi condicionado por aspectos muito fortes de sua personalidade, que acabaram condicionando o estilo.
Primeiro, a obsessão em criar permanentemente explicações para justificar a não-ação. Quando o calo aperta, FHC é capaz de investidas eficientes sobre parlamentares e a opinião pública. Mas não se lhe peça o trabalho continuado, determinado, disciplinado de perseguir objetivos.
Não lhe peça paciência para ouvir as necessidades imediatas de trabalhadores, montar fóruns que institucionalizem alianças e reclamações.
Tudo isso é muito pequeno, muito mesquinho perto do que o presidente ambiciona: a imortalidade de sua obra e o reconhecimento definitivo nos salões da história.
Arghh!
Mais que isso: o intelectual FHC defende o povo, acha a solução dos problemas do povo elemento fundamental para sua consagração futura na história. Mas não gosta do povo. Visceralmente, não suporta o cheiro do povo.
É capaz de se enlevar com altos executivos, empresários e, especialmente, intelectuais de nomeada. É capaz de formulações brilhantes em defesa dos mais necessitados. Mas, cheiro de povo, arghh!
Desde que o presidente atinja seus objetivos de legar uma nação melhor a seu sucessor, pouco importa se é esnobe, vaidoso, acomodado ou superficial.
Voltas em vão
Muito provavelmente, vai ser bem sucedido em sua empreitada. O simples fato de se ter no poder um presidente comprometido com a modernidade, ainda que resistente à ação, provoca milagres.
Ocorre que essa postura do presidente torna o caminho muito mais difícil. Distanciou-o de seu maior trunfo: a capacidade de ser respeitado à direita, por seu preparo, e à esquerda, por seu passado.
Vai chegar lá, mas com muito mais voltas do que seria necessário.

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