São Paulo, domingo, 23 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma imprevisível frequência sonora

Augusto de Campos leva 'Poesia É Risco' à Holanda

CARLOS ADRIANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Originando-se do CD homônimo, um espetáculo intermídia conjuga poesia (Augusto), música (Cid) e imagem (Walter Silveira). Inédito em São Paulo, "Poesia É Risco" foi convidado a se apresentar em Amsterdã, no próximo sábado, no teatro Ijsbreaker.
"Possa este silêncio soar para eles". A frase de Schoenberg sobre a possibilidade de recepção da novidade sonora das "Bagatelas" de Webern também pode servir para o caso do CD "Poesia É Risco".
Trata-se de uma obra que guarda grande carga concentrada de invenção (o "Poemabomba" está grafado no próprio disco digital) e navega na contracorrente das previsíveis frequências sonoras que invadem dials e ouvidos.
Sob o título programático, 30 poemas e traduções, com mais de 40 anos de atividade poética de Augusto de Campos, desde seu primeiro livro até o mais recente (o essencial "Despoesia").
Não são poemas meramente musicados ou declamados. É uma outra forma de comunicação, de natureza dialógica e sintonia intersemiótica, que eleva a voltagem expressiva do texto.
As composições cobrem um vasto espectro modal. Vão da atonal melodia de timbres ("Tudo está Dito", "Lygia Fingers") até o tom que traduz em blues a bílis de Pedro Kilkerry ("O Verme e a Estrela"). O espaço do som permite estruturar vozes em rica polifonia. A sobreposição de palavras ("Pós-Tudo") ou de frases defasadas ("Cidade", "SOS") revela múltiplos sentidos de leitura, transfigura-se em pulso acelerado ("Corsom") e em marcado ritmo das cordas vocais ("Tensão").
A dimensão no tempo permite fraturar o discurso em projeção descontínua, explodindo no "colidouescapo" plural ("Finnegans Wake"/Joyce) ou na desintegração vocabular ("Gafanhoto"/cummings).
A função metacrítica assume diversas dicções, desconstruindo a batida funk-rap em clave erudita e paródica ("Cocheiro Bêbado"/Rimbaud) ou equilibrando o risco-respiro no limite sutil do silêncio sibilino (faixa-título).
Enganam-se os que pensam que só agora a poesia de Augusto ganha música. Observando apenas o aspecto gráfico-visual do poema concreto, o erro é culpa da posição hipertrofiada que a visão ocupa na deseducação dos sentidos. Desde o início de sua produção, este poeta é atento e dedicado ao complexo "verbivocovisual" como um todo. E sempre foi o ouvinte privilegiado da música criativa, interlocutor analítico da bossa nova, da tropicália e de outras bossas.
Se Augusto encontrou um parceiro ideal em Cid, eis outro caso de afinidades eletivas e afetivas, da música nas esferas da genealogia. O pai de Augusto, Eurico, era um fino compositor. É dele o samba ("Chegou a Noite"), no canto preciso do poeta, que fecha o CD.
"Poesia é Risco" é um talho de raro trato, de recusas e medulas, que mantém teso o arco da invenção. Traz a tradição trovadoresca de Provença mixada pelo rigor de Webern, equalizada pela pureza de Scelsi e filtrada pelo espírito libertário de Cage. Responde com vigor vivo à interrogação de Hoelderlin, em "O Rei Menos o Reino", que abre o CD: "E para que poetas em tempo de pobreza?".
Para a indigência mental e sensível desta época banal e brutal, o CD pode ser "ouvisto" como "difícil", por ser de exigente fatura, mas é certamente (e justamente por isso) de generosa recompensa. Sim, a poesia é mesmo um risco. Em mais de um sentido.

Onde encomendar:
O CD "Poesia é Risco" pode ser encomendado à Livraria da Vila (011/814-5811) e à Musical Box (011/825-6844).

Texto Anterior: Os riscos da poesia
Próximo Texto: Domingo é dia de Jovem Guarda
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.