São Paulo, domingo, 23 de junho de 1996
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O comércio do terror

CARLOS ALBERTO IDOETA

O "salão de festas" é uma cela especialmente desenhada, com gerador de ruído de alta potência e luzes estroboscópicas, que emitem impulsos com frequência para quebrar a resistência humana. Os presos, antes alimentados e acordados várias vezes por dia, se desorientam. As confissões são obtidas "sem danos físicos".
Essa câmara de tortura foi produzida por uma empresa britânica e instalada num departamento especial da polícia de Dubai. Os controles de exportação no Reino Unido permitem que o material seja embarcado desmontado.
Em fevereiro de 1995, a Anistia Internacional instou publicamente os governos da Alemanha, EUA, Reino Unido e Rússia a responder por suas vendas de veículos blindados para o Exército e a polícia da Turquia. Os veículos são usados em incursões a aldeias curdas de difícil acesso, onde civis são presos, torturados, mortos e "desaparecidos". O governo turco exibe extenso currículo de atrocidades contra seu povo. Empresas da Alemanha, Bélgica, EUA, França, Israel e Cingapura competiam no ano passado por um contrato de co-produção na Turquia de 350 mil fuzis de assalto para os corpos de infantaria e gendarmaria.
A Anistia pediu aos EUA a observância da suspensão de ajuda militar à Colômbia, aprovada em 1994. O próprio governo norte-americano, que já havia admitido a responsabilidade dos soldados colombianos por graves violações de direitos humanos em operações de contra-insurgência, recusou-se a divulgar pormenores do programa militar.
Nos Estados norte-americanos do Alabama, Arizona e Flórida foram reintroduzidos os grilhões. Numa evocação a um passado de punições impiedosas, os presos são condenados a trabalhos forçados com os tornozelos acorrentados. No Alabama, quem se rebelar é algemado durante horas em postes usados para amarrar cavalos. Práticas cruéis e degradantes como essas, constatadas também em Myanma e no Paquistão, estão proscritas pelas normas internacionais concebidas depois da Segunda Guerra para promover a convivência civilizada.
Os genocídios recentemente cometidos no Burundi e em Ruanda foram outra crônica de uma morte anunciada. A Anistia e outras ONGs procuraram alertar a comunidade internacional para o risco do tráfico de armas por meio do Zaire ou da Tanzânia. As armas e munições eram de fabricação albanesa, belga, búlgara, chinesa, egípcia, francesa, israelense, norte-americana, sul-africana...
Novas tecnologias de segurança "não-letais" se divulgam no mercado internacional por meio de publicações e exposições especializadas. Um hodierno veículo britânico antidistúrbios tem painéis laterais eletrificados para repelir "manifestantes". O aerossol de pimenta oferecido por alguns países provoca queimaduras, náuseas, vômito, asfixia e irritação nos olhos. Os policiais gregos torturam com cassetetes elétricos alemães. Na China, esses cassetetes são utilizados no rosto, genitais, pescoço, interior da boca e orelha.
Depois do massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989, o governo chinês adotou equipamento de vigilância, fornecido pelos EUA e pelo Reino Unido e financiado pelo Banco Mundial, que permite "congelar" imagens de TV, inclusive noturnas, de manifestantes. Esses depois são apresentados como "contra-revolucionários" e submetidos a farsas judiciárias.
Neste mês de junho, uma delegação da seção brasileira da Anistia visitou o consulado da China em São Paulo para discutir essas e outras questões. A rudeza e a indiferença demonstradas pelo cônsul-geral não chegam a surpreender os que acompanham a trajetória das autoridades chinesas em direitos humanos.
As atrocidades se sucedem em muitas terras. Os mais vulneráveis são os pobres, as mulheres, as crianças, os idosos e os refugiados. Movimentos como a Anistia redobram esforços na vigilância das forças de segurança e seus sócios internacionais, denunciam e se opõem às transferências de material, tecnologia ou instrução de forças policiais, militares e de segurança quando fortes motivos alertam para a provável comissão de violações. Precisamos de leis e normas nacionais e internacionais que proíbam tais transferências e que obriguem os Estados fornecedores a apresentar relatórios periódicos e exaustivos à ONU e a outras organizações internacionais. Já.
Vantagens financeiras e políticas ainda prevalecem sobre direitos fundamentais. As pessoas parecem perder a capacidade de se indignar diante do inaceitável. Na ausência de ações corretivas imediatas, devemos prever mais dor, mais medo, mais mortes.

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