São Paulo, sexta-feira, 28 de junho de 1996
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'Corcunda' é perversão operística para crianças

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Ao que tudo indica, "Pocahontas" teve muito menos sucesso do que "O Rei Leão"; os estúdios Disney reagem agora com "O Corcunda de Notre-Dame". A reação é exagerada, extremista e, a meu ver, horrível. Vejamos.
"Pocahontas" era um idílio inofensivo, quase sem história, envolvendo a indiazinha e o dolicocéfalo inglês John Smith. Tudo era lindo e bem-resolvido nesse desenho animado. O vilão era uma daqueles vilões típicos de Walt Disney, caricatural e bobo, incapaz de cumprir as próprias ameaças.
Já "O Rei Leão" dispunha de um vilão muito melhor. Scar, o tio do heroizinho, era traiçoeiro, esquálido, hipócrita: um perfeito velhaco. Foi decerto a presença da maldade pura em "O Rei Leão", ao lado de cenas terríveis de tragédia (a morte do pai de Simba) que conferiram a esse desenho um impacto inesquecível junto ao público infantil.
Os estúdios Disney perceberam, então, que "Pocahontas" foi uma volta atrás. Tudo era muito lindinho e benfazejo para uma infância que, atualmente, assiste aos horrores de Freddy Krueger e de "Halloween" na sessão da tarde.
Tratou-se, então, de corrigir a infantilidade inocente de "Pocahontas", ou melhor, a pré-adolescência de seu romantismo politicamente correto, com esse tremendo "O Corcunda de Notre-Dame".
Claro, o politicamente correto está ali. Não devemos odiar os corcundas. A melhor maneira de não odiá-los é fazer com que sejam amáveis, feinhos, mas não tão feios assim.
O principal, entretanto, está em criar neste desenho animado um vilão como nunca, nos estúdios Disney, admitiu-se existir. Refiro-me a Frollo, o chefe de polícia na Paris medieval, que é quem perturba a vida de nossos heróis, o corcunda, a cigana Esmeralda e o valente Phébus.
Scar, em "O Rei Leão", era apenas um leão velhaco. Frollo é mais do que isso, é um ser humano; sua vilania tem profundidades psicológicas assustadoras.
É religioso, moralista; é um homem da lei. Só que, de dentro de sua tirania ascética, morre de desejo pela linda cigana Esmeralda. Quer matá-la, porque quer amá-la.
O desenho animado chega a extremos para caracterizar o personagem. Vemos Frollo recomendando ao algoz uma técnica especial para açoitar os prisioneiros. Será isso um desenho de Disney? Algo que as crianças possam ver?
Certamente, sim. Elas se encantaram com "O Rei Leão". E a ausência de emoções mais fortes em "Pocahontas" provou-se contraproducente em termos de marketing.
Produziu-se, agora, um desenho animado infernal: associa o politicamente correto ao sadismo puro e simples, duas coisas que se combinam na mentalidade infantil e na dos adultos também.
Ou seja: quanto mais pena sentirmos dos "diferentes", quanto mais torcemos pelo pobre Quasimodo e pela discriminada cigana Esmeralda, mais nossa piedade se imiscui de gozo pela opressão que eles sofrem.
E, quanto mais o filme nos mostra a interioridade do vilão Frollo, mais nos fascinamos ao vê-lo semelhante a nós, e ao mesmo tempo nos congratulamos, porque não seríamos nunca capazes de tanto sadismo. O sadismo se transforma em masoquismo, e do masoquismo passa ao narcisismo -é o que acontece com toda criança, e da criança ao adulto tudo se esmaece e civiliza, mas não se perde.
É uma ópera para crianças. É a perversão operística, o romantismo tardio, a psicologia densa do vilão contra a simplicidade idiota dos bonzinhos.
Não vou além nesta crítica, vou ficar parecendo criança -não uma criança atual, mas uma criança mesmo- se disser tudo o que acho desse desenho detestável.
O romance de Vitor Hugo, no qual o filme se baseia, terminava com a morte de todo mundo. Não o li.
Há um clássico de William Dieterle, com Charles Laughton usando a máscara do Corcunda: é um filme pavoroso, que mata apenas metade do elenco, mas deixa vivos Esmeralda e Quasimodo.
Pouco importa o final feliz, ponto em que o desenho animado de Disney previsivelmente capricha até o exagero. Importa o exagero da coisa toda. Crianças vêem o horror sangrento dos filmes da sessão da tarde. Mas tudo aquilo é apenas feio, distante, monstruoso.
Criando uma monstruosidade boa e uma vilania "profunda" psicologicamente, os estúdios Disney exageraram na sua vontade de lucrar.
Claro que não sou a favor de que se esconda das crianças qualquer coisa que seja da "alma humana".
Há na alma humana tudo e mais um pouco do que Frollo imagina haver, tudo e mais um pouco do que há em Esmeralda, em Quasimodo, em Vitor Hugo.
A questão é saber se se mostra isso, ou se tudo isso é mero pretexto para uma exploração comercial.
Os desenhos de Walt Disney sempre foram esteticamente admiráveis, mas de certa forma ao preço de qualquer realidade; eram fantasias visuais.
Querendo entrar no sombrio, no gótico, no romântico, é como se sua opulência estética se resolvesse em ópera, ópera para milhões, artefato atômico, dilacerante, horrendo, num verdadeiro estupro da sensibilidade infantil, ou melhor, de qualquer sensibilidade que se preze.

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