São Paulo, sábado, 29 de junho de 1996
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Os que nunca foram

ALDO TEMPERANI PEREIRA

Historicamente visto como o mais conservador dos Poderes, o Judiciário tem hoje curiosa e intrigante atuação. Com o advento dos concursos públicos sérios, concorridos e democratizados para ingresso na magistratura, criou-se um grupo organizado de pessoas com características estranhas ao perfil dos que ordinariamente exerceram e exercem o poder neste Brasil das mutretas e injustiças.
Esses novos juízes, que agora já chegam aos tribunais, são pessoas com boa formação, possuem orgulho profissional, visão crítica e, por opção de vida, mostram-se refratários à covardia intelectual, corriqueira e sofisticada forma de estupidez. A natureza do serviço judiciário leva, naturalmente, a que praticamente tudo seja questionado. Não se deixaram seduzir pelas possibilidades bastante concretas de rendimentos maiores como profissionais liberais. Muitos fecharam escritórios bem-sucedidos para se dedicar a tal ideal de vida, aceitando como retribuição material, unicamente, modestos vencimentos comparáveis aos de gerente comercial. São pessoas diferenciadas, esquisitões na terra do "é dando que se recebe".
Como não são ingênuos, perceberam que um estranho "direito alternativo" sempre existiu e se materializou em benefício dos poderosos, culminando nos verdadeiros depósitos de seres humanos pobres, autênticos campos de concentração que são os presídios brasileiros. Também no respaldo absurdo dos interesses da ladroagem financista, dos banqueiros debochados aninhados nas ilhargas do poder, muitas vezes do poder oficial. Nesses últimos anos, em meio ao oba-oba dos políticos profissionais, passaram a se travar batalhas judiciais perturbadoras da convivência embasada no código de ladrões que se estabeleceu neste Brasil de desigualdades e tragédias sociais. Até leis específicas para convalidar práticas lesivas ao erário, solucionando situações particulares e caricatas, foram aprovadas -e sancionadas (vide calendários da gráfica do Senado), diante do risco representado por um Judiciário que chega, ainda que tardiamente, à sua maturidade.
Tal panorama, se demonstra, é demais para agentes do poder que se devotaram ao entreguismo da pátria e ao combate às conquistas sociais mais consagradas. Acenando para uma população sofredora e ansiosa por soluções, que em troca de uma esperança já aceitou até congelamento de poupanças e desmantelamento de hospitais, tais agentes, agora, sob máscaras de democratas, dedicam-se, por meio do balcão de negociações espúrias estabelecido no Congresso, à nefanda tarefa de tentar subjugar o poder da Justiça. E dê-lhe súmulas vinculantes, para trazer ao tribunal cujos ministros o presidente da República nomeia, a primeira e a última palavra do Judiciário. Abaixo as liminares, porque elas os impedem de fazer o que bem quiserem nesta terra de ninguém. E tome controle externo, para saberem com quem estão falando, esses juizinhos caipiras que nem conhecem Brasília ou Wall Street.
Alto lá, senhores! Nem tudo na vida são mídias favoráveis ou juros altos. Saibam vossas excelências que esse grupo de esquisitões tem noção do próprio valor e do que pretende. Já foi dito que as estirpes condenadas e cem anos de solidão não terão outra chance sobre a terra. E essa oportunidade, talvez a última, de se consolidar uma democracia, não será desperdiçada.
Daqui por diante ninguém impedirá esse Judiciário, nem mesmo suas facções ainda atrasadas e subservientes, de se antagonizar fortemente com maracutaias e golpismos, protagonizando seu papel na história deste país destinado a ser grande e justo, fraterno e solidário, como é da índole de seu povo.

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