São Paulo, sábado, 29 de junho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Coletânea norte-americana folcloriza o Brasil

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REDAÇÃO

Mais um capítulo da série macumba para turista: a gravadora Eldorado traz ao Brasil, em edição limitada, a coletânea de quatro CDs "Brasil - A Century of Song".
A caixinha foi produzida no ano passado, nos Estados Unidos, pelo nativo Jack O'Neil e pela brasileira Nina Gomes. Um crítico avançadinho rasgou elogios na última edição da revista norte-americana "Spin".
Estranhamente, o século deles começa em 1939, com Ary Barroso e Mário Reis cantando "Deixa Essa Mulher Sofrer".
O objetivo era traçar para os de lá um panorama dos sons produzidos por este país tropical. O exotismo foi a via de escolha.
Até para os de cá, a seleção soa muito, muito folclórica. O ritmo é o motor de todo o repertório escolhido. Por 65 faixas desfilam pandeiros, cuícas, berimbaus, agogôs, escolas de samba, batuques, cirandas...
O exotismo se estende à divisão do repertório. Cada volume é temático e inclui exemplares capazes de divertir emepebistas mais fanáticos pelo nonsense.
Folk e Carnaval
Começa por "Folk & Traditional", que une pontas tão distantes quanto as de Carmem Miranda e de Pena Branca & Xavantinho.
Não faltam clássicos da MPB -autorais, não tradicionais-, como "Yaô", de Pixinguinha, com a Orquestra Brasília, "Ela Diz que Tem", com Carmem Miranda, "Vira e Mexe", instrumental de Luiz Gonzaga.
Para ouvidos brasileiros, o que marca o volume é a fatia realmente folclórico-tradicional, com rituais de candomblé e sambas de viola do Mestre Cobrinha Verde.
Peças impressionantes, essas e outras -como "Berimba" e "Ciranda do Norte", com Papete- são quase tão incomuns em disco no Brasil quanto nos EUA, quase justificando a macumba para turista em território nacional.
Carnaval e Bossa Nova
"Carnaval" é menos surpreendente -para nós, claro. Tem a virtude de abrir com legítimos batuques de samba e com "Cenários", com Paulinho da Viola. E há Cartola, e a Velha Guarda da Portela, e as vozes femininas da Mangueira.
Mas a confusão vai além, na mistura de sambas-enredo cariocas com o reggae baiano do Raízes do Pelô e o pagode do Fundo de Quintal, não muito carnavalescos.
A barra pesa no terceiro volume. "Bossa Nova Era" é um disco de... samba. Começa com a mais atípica das faixas gravadas por João Gilberto, "A Felicidade". Gravada em 58 para o filme "Orfeu do Carnaval", é um sambão, que de bossa só tem a voz de João.
O estranhamento continua: o patriarca Noel Rosa ganha seu registro na coleção (nesse volume, sabe-se lá por que) numa versão instrumental bem sambão de "O Orvalho Vem Caindo".
Disparidades como os grandes Elizeth Cardoso e Cyro Monteiro cantando Ary Barroso e os nem tão grandes Antonio Carlos & Jocafi se alinham no nonsense de receberem o rótulo "bossa nova".
Chico Buarque canta "Ela Desatinou" (68), que nós de cá sabemos não ser exatamente uma canção bossa nova. Leila Pinheiro, que nós de cá sabemos de bossa só ter a casca, canta. Baden Powell homenageia Caymmi, que nós de cá sabemos nada ter de bossa.
A surpresa acaba sendo Beth Carvalho, em "Só Quero Ver", canção de início de carreira que revela uma bela voz e alerta para a ausência de Nara Leão no volume.
MPB
Por fim, há "Música Popular Brasileira" -ei, o que era o resto?- que guarda o maior número de contradições, ainda na rouparia do samba-folclore.
Este vai do sublime -Clara Nunes ("Ilu Ayê", de 71), ou Jorge Ben Jor ("O Dia que o Sol Declarou Seu Amor pela Terra", 81- à baixaria -Ivan Lins, Joyce, Simone...
O exotismo ainda é a pauta. Gal Costa canta a bela "É d'Oxum", Beth Carvalho volta com a popular "Coisinha do Pai". Milton Nascimento mistifica um Brasil folclórico -de matas e índios- no texto introdutório do libreto.
A seleção é atabalhoada, típica de quem se debruçou com gana sobre material extenso demais. Mas pode ecoar aqui, expondo um Brasil primitivo que nem o Brasil semiglobalizado conhece. E, para os de lá, não deixa de mostrar um Brasil bem mais viçoso que o que anda existindo de verdade.

Caixa: Brasil - A Century of Song (4 CDs)
Lançamento: Blue Jackel/Eldorado
Preço: R$ 72, em média
Onde encontrar: Lado A (258-5911)

Texto Anterior: "Não há manipulação"
Próximo Texto: Os intérpretes escolhidos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.