São Paulo, terça-feira, 2 de julho de 1996
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CD resgata as poucas canções de Mozart e Haydn

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O disco "Mozart e Haydn: Songs and Canzonettas" começa com uma canção trivial, uma serenata escrita por Mozart em 1780. E termina com uma das maiores canções do século 18, "The Spirit's Song", de Haydn, estranha e grave, já prenunciando a estranheza e gravidade de Schubert. De uma a outra, o que se escuta é nada menos que a introjeção da voz no espírito da música: é a passagem do classicismo ao romantismo, pelas vias da tonalidade.
Nem Haydn nem Mozart escreveram muitas canções; e o CD resgata o que os dois têm de melhor neste campo, somado à cantata "Ariana a Naxos", de Haydn, uma cena dramática para soprano e piano, com quase 20 minutos de duração. As canções de Mozart incluem desde peças leves, em francês, até canções um pouco mais ambiciosas, da época de Don Giovanni, e uma canção infantil, popular até hoje ("Komm, lieber Mai"), escrita em 1791, depois da "Flauta Mágica".
Haydn, de sua parte, só se volta para o gênero depois dos 60 anos, na década de 1790, e chega a arriscar na canção certo tipo de composição contínua e assimétrica que o transporta, musicalmente, para o século seguinte. Se as canções de Mozart são hoje uma nota de rodapé na sua obra, as de Haydn têm outro peso e interesse.
Ninguém melhor do que a mezzosoprano sueca Anne Sofic von Otter para interpretar este repertório. Afinação perfeita, controle absoluto de cada sílaba, timbre característico: isto as outras (Cecilia Bartoli, ou Angela Gheorghiu) também têm. Mas von Otter tem, além disso, a ousadia na escolha e o gosto sem concessões.
Seu parceiro no CD de Haydn e Mozart é Melvyn Tan, tocando um pianoforte italiano restaurado, em 1815. Tan é um acompanhante delicado e dedicado, minuciosamente desenhando suas notas em torno às inspirações (nos dois sentidos) da cantora.
Neste disco, Tan traduz Haydn de volta ao mundo do que os poetas da época chamavam de "senso e sensibilidade" - reinterpretado noutro sentido por Jane Austen.
"Gostaria de despertar no espírito de alguém que ainda não a conhece o interesse pela música de Haydn", escreveu Murilo Mendes, em "Formação de Discoteca". Modestamente, mas sinceramente, eu também. Talvez não seja este o repertório mais óbvio para isso. Mas é um Haydn que vale a pena, e interpretado no limite imaginável de senso e sensibilidade.

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