São Paulo, quinta-feira, 4 de julho de 1996
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Saúde de Ieltsin põe instituições em xeque

TONY BARBER
DO "THE INDEPENDENT"

A saúde precária de Boris Ieltsin, ponto focal de interesse dos estrangeiros na eleição de ontem (mesmo que não o fosse para os próprios russos), suscita questões tão pertinentes na Rússia pós-comunista quanto teriam sido na época soviética.
Como exatamente se dá a sucessão de um líder do Kremlin para outro, e existe alguma garantia de que a transferência de poder possa acontecer de maneira pacífica? Teoricamente, pelo menos, o quadro é claro.
A Constituição russa, promulgada em dezembro de 1993, afirma que, no caso da morte do presidente ou de ele ficar incapacitado de cumprir seus deveres, o cargo passa temporariamente ao premiê, atualmente Viktor Tchernomirdin. Este, por sua vez, é obrigado a convocar novas eleições presidenciais no prazo de três meses.
Na prática, porém, nada garante que a Rússia seria capaz de superar facilmente o transtorno que seria gerado pela saída precoce do presidente Ieltsin do cargo.
Os mecanismos constitucionais vigentes nunca foram testados e podem valer pouco contra uma tradição secular de lutas pelo poder, muitas vezes violentas, que acompanham a morte de um czar ou chefe partidário.
Ademais, embora a Constituição seja considerada quase sagrada pelas classes políticas de países como os EUA, não existe na Rússia tal devoção a um documento que é visto como tendo sido redigido sob medida para Ieltsin.
O atual presidente promulgou a Constituição logo após o levante armado de outubro de 1993 no edifício do Parlamento russo, e a gama extraordinária de poderes que ela lhe outorga, à custa do Legislativo, visava assegurar que ninguém mais pudesse gerar uma ameaça séria a seu governo.
Fragilidade
A fragilidade da ordem constitucional russa foi exposta pouco após o primeiro turno da eleição presidencial, em 16 de junho, quando um grupo de representantes da linha dura (incluindo o ministro da Defesa, o chefe da antiga KGB e o chefe da segurança pessoal de Ieltsin) foi expulso do Kremlin sob a acusação de tentar forçar o adiamento da eleição.
Menos de um mês depois do drama, Ieltsin levantou dúvidas sobre sua disposição em pautar-se pelos dispositivos constitucionais quando rejeitou uma lei aprovada pelo Parlamento (dominado pelos comunistas) que delineava o processo pelo qual entregaria o poder, caso viesse a perder a eleição.
Muitos comentaristas políticos russos acreditam que Ieltsin, apesar de insistir na realização das eleições, jamais teve qualquer intenção de transferir o cargo pacificamente se a derrota assomasse como perspectiva realista.
Por toda parte em Moscou são ouvidos boatos sobre um suposto "Plano B", dando conta de que Ieltsin pretenderia declarar estado de emergência nacional e permanecer no poder, em lugar de passar seu cargo no Kremlin para Guennadi Ziuganov.
Folha de papel
O sentimento de que a Constituição não passa de uma folha de papel, a ser alterada, ignorada ou jogada fora à vontade, é entrevisto nas atitudes de muitos políticos russos eminentes. É o caso, principalmente, de Alexander Lebed, o general da reserva de fala direta a quem Ieltsin encarregou da segurança nacional quando o militar reformado obteve o terceiro lugar no primeiro turno da eleição.
Apesar de não dispor de uma base real de poder nas obscuras estruturas erguidas por Ieltsin no Kremlin, Lebed não oculta sua ambição de governar a Rússia o quanto antes.
Na semana passada, propôs que lhe seja dado o cargo de vice-presidente, abolido em 1993 depois que seu ocupante na época, Alexander Rutskoi, tomou parte numa rebelião armada contra a Casa Branca, a sede do governo russo.
É evidente que Lebed vê a si mesmo como o "príncipe herdeiro", com ou sem Constituição. Outras figuras influentes no círculo de Boris Ieltsin devem ter pontos de vista diferentes, especialmente porque nas últimas duas semanas Lebed vem revelando ter opiniões políticas muito menos liberais do que havia dado a entender durante sua campanha eleitoral.
Entre aqueles que poderiam opor resistência a uma tentativa de Lebed de chegar ao poder figuram não apenas os reformistas como Anatoli Chubais, um dos principais estrategistas da campanha de Ieltsin, mas também políticos mais centristas com gosto pelo poder, como Tchernomirdin.
Em julho passado, quando Ieltsin sofreu o primeiro de seus dois ataques cardíacos de 1995, Lebed era uma figura política marginal. Tchernomirdin era o único "presidente herdeiro" plausível.
Agora Lebed ocupa o centro do palco político e, se a saúde de Boris Ieltsin continuar a se agravar, é difícil ver como a Rússia poderá evitar mais um de seus periódicos conflitos pelo poder no Kremlin.

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