São Paulo, sábado, 13 de julho de 1996
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Quasímodo e seus amigos

RUBENS RICUPERO

Ao remexer velhos papéis em minha recente mudança para Genebra, redescobri um recorte amarelecido do artigo "Gigante impotente", publicado nesta Folha anos atrás.
Nele, Wanderley Guilherme dos Santos comparava o Estado brasileiro não propriamente a um gigante a sufocar a sociedade civil, mas a um mostrengo disforme, com partes do corpo descomunais e outras atrofiadas. Uma espécie de Quasímodo, o trágico "Corcunda de Notre Dame", de Victor Hugo, que nos assustou quando crianças na versão de Charles Laughton e agora volta pasteurizado num simpático dançarino no último desenho de Walt Disney.
As deformidades eram obviamente as estatais, o setor de produção onde o governo não precisava ter se metido, enquanto a atrofia ficava por conta das coisas que o Estado devia fazer e não faz ou faz mal, como saúde, educação básica, segurança dos cidadãos, Justiça, etc.
Tudo isso vem a propósito do movimento pendular que, depois de valorizar quase obsessivamente, nos últimos anos, o mercado e as empresas como fatores de desenvolvimento, começa agora a voltar a atenção para a necessidade de um Estado eficiente e capaz.
Na abertura da 9ª Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), na África do Sul, o diretor-gerente do FMI, Michel Camdessus, chegou a dizer que, em certos países em desenvolvimento, a figura principal do governo deveria ser o ministro da Justiça e não o da Economia.
Por seu lado, o Banco Mundial se prepara a dedicar seu relatório do ano próximo à urgência de dotar países em desenvolvimento de um setor público capaz de criar condições que possibilitem o crescimento sustentável e equilibrado.
Essa volta a uma prioridade tradicional corresponde não só ao bom senso, mas às conclusões de pesquisas histórico-econômicas que valeram aos autores um Prêmio Nobel de Economia há poucos anos.
Demonstrou-se então que, muitas vezes, a qualidade das instituições públicas, a adequação da lei a uma economia moderna, a segurança e a rapidez das decisões judiciais, a correção e continuidade da política macroeconômica eram elementos muito mais determinantes do desenvolvimento do que a abundância dos fatores de produção e dos recursos naturais.
É o que se vê, por exemplo, no Chile, onde não é por acaso que a única experiência de sucesso provavelmente consolidada na América Latina coincida com o mais competente setor público da região.
Chega, assim, ao término a cansativa polêmica entre defensores de um Estado intervencionista e sufocante e advogados de um impossível mercado perfeito, que se abstrai do governo e, pela "mão invisível", gera equilíbrios automáticos.
Hoje, ninguém mais contesta que, sem leis, instituições e políticas adequadas, o mercado e as empresas não dispõem da atmosfera necessária para respirar e prosperar.
Desse ponto de vista estamos mal. Hélio Jaguaribe dizia que o Brasil teve, até os anos 70, um dos melhores setores públicos do Terceiro Mundo, mas que, desde então, a situação não cessou de se deteriorar.
Alguns se consolam com a idéia de que o setor privado realizou seu ajuste mais rápido e melhor do que o governo, como provam os aumentos de produtividade. Mas até quando poderá ele sozinho compensar a ineficiência do setor público?
É por isso que a reforma administrativa não deveria buscar apenas o equilíbrio orçamentário por meio de economia com cortes de pessoal, mas sim visar ganhos de eficiência por meio da criação de um serviço público profissionalizado, selecionado e promovido na base do mérito, organizado em carreiras e decentemente remunerado.
O "civil service" inglês e o serviço público francês são modelares nesse sentido. Para lá chegar, porém, é preciso erradicar de uma vez por todas o funesto sistema pelo qual os partidos nomeiam indiscriminadamente até funcionários encarregados de fiscalizar impostos ou normas ambientais.
O ideal seria permitir apenas limitadíssimas nomeações fora da carreira para alguns poucos cargos de DAS, como já ocorre no Itamaraty, no Banco Central, no Banco do Brasil e no Tesouro, não por coincidência as "ilhas de excelência" do nosso serviço público.
A culpa não é dos funcionários, mas do sistema político, único competente para decidir sobre a reforma. E nele, infelizmente, concentram-se os amigos de Quasímodo, empenhados em preservar as deformidades das estatais e do empreguismo.
Se continuar assim, em vez do "happy end" de Disney, vamos de novo ver o velho final triste do livro de Victor Hugo.

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