São Paulo, sábado, 13 de julho de 1996
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Aprille Millo faz recital despido de sutileza

IRINEU PERPÉTUO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Para o bem ou para o mal, foi a noite do verismo. Anteontem à noite, no teatro Sérgio Cardoso, a soprano Aprille Millo deu um recital despido de sutileza e nuances estilísticas.
A noite começou mal, mas não tanto por culpa da diva. Enquanto ela tentava cantar duas árias bem ornamentadas de Alessandro Scarlatti, as portas do teatro continuavam se abrindo e fechando, acolhendo a parte do público que chegou atrasada.
No balcão do teatro, a ária de Gluck que vinha na sequência ("O del Mio Dolce Ardor") foi intermeada com a fala das funcionárias, empenhadas em tanger o público para a platéia.
"Tem lugar lá embaixo", sussurravam. E as pessoas, obedientes, iam ruidosamente mudando de lugar, enquanto Millo se esforçava para que alguém prestasse atenção no que ela estava cantando.
Mas o pior veio mesmo depois de tudo calmo. A ária da cantata "O Filho Pródigo", de Debussy, foi solenemente estraçalhada, tanto pelos arroubos veristas da cantora, quanto pelo pianista Steven Crawford. Este último errou tanto que nem parecia ter ensaiado a obra.
Verismo
Verismo é a escola naturalista italiana, que floresceu no final do século 19 e início do 20. Sua temática destaca um enfoque emocional de episódios violentos, extraídos do cotidiano.
A interpretação verista demanda peculiares arrebatamento e potência vocal. Quando transferida para obras de outro estilo, o resultado final é grotesco.
Daí, a glória e a desgraça de Aprille Millo. Consagrada no repertório verista, ela canta tudo nesse estilo -seja Wagner, Debussy ou Richard Rodgers. Não funciona.
E a primeira a reconhecer é a própria cantora. Tanto que, na segunda parte do recital, resolveu mudar todo o programa (que, por sinal, a organização do concerto só fez chegar às mãos do público no intervalo), incluindo mais árias veristas -ou seja, Aprille Millo em seu elemento natural.
Sem simplicidade
O tenor Roberto Alagna costuma dizer que a atitude cênica mais bela é a simplicidade. E que, durante a introdução instrumental de uma ária, nada mais expressivo que a imobilidade.
Aprille Millo certamente discorda. Não há nada mais emblemático que sua interpretação da ária "L'Altra Notte", da ópera "Mefistofele", de Boito -que ela cantou duas vezes.
Estamos no terceiro ato de uma história inspirada no "Fausto", de Goethe. Na prisão, Margherita (Gretchen) delira, relembrando o afogamento do seu filho, enquanto espera a hora de sua execução.
No palco, enquanto o piano toca a introdução, a cantora faz uma mímica que parece querer sintetizar tudo que aconteceu com seu personagem até então.
Põe a mão no rosto, caminha, faz gestos desesperados. Chega a arrancar os cabelos. Abre os braços ao cantar "vola" ("voa").
Ajoelha-se e chora ao implorar "pietà" (piedade). De quebra, bate no peito ao emitir as últimas notas.
Foi mais ou menos a tônica de "Ebben... Ne Andr• Lontana", da ópera "La Wally", de Catalani (celebrizada pelo filme "Diva, Uma Paixão Perigosa"). "La Mamma Morta", de "Andrea Chênier", de Giordano (do filme "Filadélfia") e a oportuna "Suicídio", de "La Gioconda", de Ponchielli.
É kitsch? Muito. Empolga? Muita gente. Tamanhos foram os aplausos que Aprille Millo -que parecia estar se divertindo mais do que qualquer um- agradeceu emocionada, dizendo que o Brasil "é um sonho". Talvez esteja certa.

Concerto: Aprille Millo (soprano)
Quando: hoje, às 21h
Onde: Auditório Cláudio Santoro (av. Arrobas Martins, 1.880, tel. 0122/62-2334, Alto da Boa Vista, Campos do Jordão)
Preço: R$ 25 e R$ 50

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